sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Os Velhos Desafios da Educação Física e o Novo Coronavirus

 


 Campus UEG - ESEFFEGO (setembro 2020)

 

Neste atual momento de Pandemia, com a descoberta de uma nova e mais contagiosa variante (Ômicron) faz-se necessário e urgente a problematização sobre as práticas em Educação Física, a fim de se tentar   vislumbrar novos caminhos e alternativas para o ensino e aprendizagens dos elementos importantes e fundamentais da cultura corporal num contexto das limitações e da precarização do trabalho e das contradições do chamado Ensino à Distância (EaD), num contexto onde o descontrole do vírus Sars-Cov-2 e suas inúmeras variantes, impõe novos hábitos para a humanidade como a vida em confinamento, lockdown, quarentenas, distanciamentos sociais, uso contínuo de máscaras, testagens e etc. , escancarando e potencializando o crescimento exponencial da miséria, da violência contra mulheres, do racismo, da exclusão digital, da fome e do desemprego.

Mas para entendermos melhor o atual momento da Educação Física e da Pandemia, é necessário sobretudo entendermos e resgatarmos um pouco sobre o percurso histórico da Educação Física desde o seu surgimento na Europa do século XIX, passando pelo novo modelo de reestruturação produtiva, o chamado toyotismo, iniciado nas últimas décadas do século XX e chegando ao atual século XXI, e que historicamente falando, este novo século acaba de ser  inaugurado pela chamada pandemia do novo coronavirus.

 A Educação Física, desde as  suas origens durante o século XIX na Europa, contribuiu para moldar o corpo e a vontade do trabalhador dentro dos preceitos da eugenia e do higienismo. Desde seu surgimento na Europa do século XIX até meados dos século XX, a Educação física era considerada como importante componente curricular das escolas, pois servia como instrumento imprescindível para formação de corpos sadios, úteis, fortes, disciplinados e obedientes, características estas importantíssimas para a reprodução da lógica capitalista no ambiente fabril. Porém, após as mudanças no mundo do trabalho, com a introdução da microeletrônica, da robótica, das tecnologias virtuais, de computadores no sistema de produção, se produziu também a exigência de um novo tipo de trabalhador polivalente, empreendedor e flexível, dentro de uma nova planta fabril horizontal, pautada na qualidade, no desempenho e na captura da subjetividade do próprio trabalhador. Sendo assim, impõe-se uma nova educação do corpo. A educação física então passa a ser secundarizada como componente curricular, dando lugar às disciplinas relacionadas à informática, às linguagens e às matemáticas. A Educação Física vai sendo extinta da escola, assim como a filosofia e a artes, seja na forma de diminuição contínua de sua carga horária ao longo dos anos, seja também na forma mais drástica como a implantação de reformas ou de Políticas Públicas (Lei nº 13.415/2017) por parte do governo federal.

 

O Movimento Ginástico Europeu e o nascimento da Educação Física

 

A Educação Física que surgiu na Europa durante o século XIX, a partir do chamado Movimento Ginástico Europeu era alicerçada sobre os paradigmas eugênicos e higienistas e com a intenção de formar, disciplinar e controlar o corpo dos trabalhadores. Ela se torna o principal instrumento para a formação de corpos fortes, obedientes, disciplinados, úteis e sadios para as fábricas em plena expansão. A falsa promessa da chamada promoção da saúde através dos exercícios ginásticos era realizada sem, no entanto, modificar as condições sociais e sanitárias dos emergentes centros urbanos. A chamada ginástica se torna neste período disciplina obrigatória e também o componente curricular mais importante nas escolas, trazendo para si a  responsabilidade de se transformar no “remédio e na cura” para todas as mazelas sociais. (SOARES, 1997)

A formação de um corpo servil, forte e eficiente se fazia essencial e imprescindível para a própria produção e reprodução do capital urbano-industrial em plena expansão na Europa do século XIX. A ginástica moderna, que posteriormente passará a ser denominada de Educação Física passa então a cumprir e efetivar o seu importante papel como instrumento de controle e adestramento do corpo do trabalhador. Não somente preparar o corpo para o trabalho, mas também o treinamento para a guerra e ainda a formação de um padrão de corpo nacional pautado nos paradigmas eugênicos, na preparação de um “tipo” de corpo de correspondesse à  “beleza” da nação e à “força” do fascismo na  representação do Estado Nacional. (SOARES, 1997)

 

Para se legitimar e ser aceita como componente curricular dentro da escola, a ginástica se apropria dos paradigmas e pressupostos das ciências naturais. As leis da mecânica, da biologia e da fisiologia passam a reger as aulas de ginástica. O corpo cartesiano é então todo “dissecado” e “esmiuçado” pelas ciências positivas e passa a ser compreendido como objeto a ser estudado, medido e analisado sob a luz do saber sistematizado da ciência moderna. Um corpo matemático, econômico, utilitário, com movimentos precisos e controlados é produzido pela ginástica do século XIX, para posteriormente ser totalmente aniquilado, mutilado e subsumido no chão das fábricas europeias.

Ao mesmo tempo em que a física e a fisiologia são incorporadas às aulas de ginástica, os movimentos e a artes circenses também passam a ser apropriados aos conteúdos das aulas, porém de forma diferente, sendo ressignificados e reelaborados com novos sentidos relacionados à racionalização e à mecanização do movimentar humano.

As atividades circenses eram carregadas do lúdico, do improviso, da espontaneidade e do descontrole. Corpos de malabaristas, palhaços, funâmbulos eram considerados subversivos à nova moral da burguesia urbano industrial. O circo com sua característica nômade, representava  o avesso da vigilância, controle e rigidez das fábricas. Corpos livres, criativos e engraçados geravam contraditoriamente espanto, diversão, medo, lágrimas, risos e pânico ao público nas ruas e praças das cidades. Em contrapartida, o capital continuava cada vez mais sedento por corpos subservientes e disciplinados, ao ponto de classificar o circo como atividade marginal, subversiva e ilegal.

A ginástica já incorporada à lógica da produção capitalista e com a importante função de formar e amoldar o corpo do trabalhador à desumana rotina fabril, passa então a incorporar os variados movimentos do circo, porém dando-lhe novos sentidos e significados. O “salto mortal” dos trapezistas passa a ser analisado e explicado sob o olhar da anatomia e da física. A famosa “parada de dois” dos palhaços do circo passa a ser interpretada pela mecânica newtoniana. O equilibrista agora é estudado  a partir  do posicionamento exato do seu centro de massa. Os corpos “bizarros” das mulheres barbadas, dos anões e siamesas são explicados pela biologia e pela genética mendeliana.

Vê-se assim a o surgimento da ginástica ou da Educação Física Moderna em um contexto de preparação do corpo do trabalhador para a produção fabril capitalista durante o século XIX. Era fundamental neste período efervescente do capital a máxima exploração do trabalhador  na extração do mais valor. No entanto, era fundamental também adestrar, controlar e disciplinar este corpo do trabalhador para esta nova fase de exploração do sistema capitalista de produção. Aqui entra em cena a ginástica com o importante papel de sistematizar e racionalizar o uso deste corpo nas fábricas. Moldar e adestrar o corpo para em seguida aniquilá-lo completamente para a produção e manutenção do capital.

Durante o século XIX e até meados do século XX,  a Educação Física Moderna, anteriormente denominada de ginástica, cumpre efetivamente o seu importante papel como instrumento de controle e de disciplina sobre o corpo do trabalhador. Ao se apropriar dos métodos das ciências positivas, a Educação Física se legitima dentro e fora das escolas. A racionalidade dos movimentos, a exatidão dos gestos, as performances precisas, a ergonomia postural e a economia de energia na realização dos movimentos, garantem à Educação Física posição de destaque frente às demais disciplinas do currículo escolar.

A nova reestruturação capitalista (Toyotismo)  e a desestruturação da Educação Física

Já durante o século XX e o pleno desenvolvimento da chamada reestruturação fordista-taylorista, o corpo é ainda capturado e reconfigurado segundo as imposições da produção linear, mecanizada e repetitiva das fábricas e de suas potentes máquinas. Mais uma vez a Educação Física continua com seu importante papel em robotizar braços e pernas dos trabalhadores. A promoção dos corpos fragmentados e dilacerados a se posicionarem servilmente em frente às infinitas esteiras de produção.  A partir deste mesmo século, a Educação Física escolar experimenta um forte processo de esportivização, onde o conteúdo esporte passa a ter grande hegemonia sobre os demais conteúdos da cultura corporal. Entretanto, o esporte também não deixa de cumprir a importante tarefa de promoção do corpo do trabalhador para o trabalho, reproduzindo também nas aulas o discurso de disciplina, saúde e utilidade.

Se torna fundamental a cooptação do trabalhador especializado  nas fábricas, a fim de conformar seu corpo e sua mente a um cotidiano sem sentido, sem prazer e sem descanso. O trabalhador se transforma em “apêndice das máquinas”, se vê obrigado a vender o seu próprio corpo em troca de um mísero salário, capaz de garantir apenas a sua sobrevivência para continuar a trabalhar o dia seguinte. Nos primeiros anos da escola, a Educação Física já se torna a responsável em inculcar no corpo infantil os fundamentos e as bases de um movimento racionalizado, eficiente, rápido e útil ao novo mundo do trabalho composto por máquinas, hierarquias, cronômetros e esteiras. Conteúdos alicerçados em paradigmas higienistas e eugênicos habilitam a educação física para a formação de corpos disciplinados, servis e obedientes, ainda sob a justificativa de proporcionar uma legítima “saúde” aos seus praticantes, e ao mesmo tempo negando as péssimas condições de vida e de miséria da maioria da população brasileira.

As chamadas “crises” ajudam a fortalecer ainda mais o sistema de exploração e que fazem parte, por sua vez, da própria natureza do capitalismo. As reestruturações econômicas e educacionais são também  impostas à sociedade  durante estes períodos de “crises” justamente para manutenção e fortalecimento do próprio capital. Ao final, quem realmente paga a “crise” é sempre o próprio trabalhador com a ampliação das políticas de austeridades fiscais que resultam sempre em cortes de direitos, diminuição de salários e no aumento do desemprego.

Porém, a partir das últimas décadas do século XX, o sistema capitalista entra em uma nova e forte crise provocada pela disparada dos preços do barril de petróleo em todo o mundo, com a estagnação da economia de todos os países capitalistas (“Crise do Petróleo”). Esta crise obriga a uma nova reconfiguração dos processos de produção, ou seja, se inaugura uma nova reestruturação a fim de evitar as quedas dos lucros das empresas e ainda garantir e perpetuar a própria lógica de reprodução capitalista, lançando sobre os ombros dos trabalhadores todos os prejuízos e ônus da crise. A reestruturação capitalista em vigor neste período altera radicalmente a planta das fábricas  e a própria organização e execução do trabalho humano.

O advento de novas e avançadas tecnologias na produção fabril como os robôs, computadores e a internet, e também a nova reconfiguração da arquitetura da produção, não  mais seguindo necessariamente a linearidade das esteiras e nem tão pouco a ultra especialização fordista, mas adotando o desenho em forma de círculos (ciclos de produção) e o trabalho polivalente, obriga assim a formação de um novo tipo de trabalhador capaz de se adaptar à nova realidade da chamada produção em Gestão de Qualidade Total ou Toyotista.

Dentro desta nova realidade produzida pela reconfiguração toyotista, este novo trabalhador passa a assumir novas características adequadas à reestruturação imposta pelas mudanças na configuração e morfologia fabril. A polivalência do trabalhador passa a ser uma das novas exigências do trabalho flexível, alterando drasticamente o modelo fordista de trabalhador ultra-especializado. A chamada polivalência do trabalhador implica na apropriação de novas competências, que são saberes relacionados à produtividade, à competitividade e à qualidade da produção de mercadorias, com o objetivo primordial de manter a hegemonia do capital na produção. Um trabalhador polivalente é aquele capaz de operar de forma simultânea várias máquinas e ainda acessar várias tecnologias ao mesmo tempo, sendo ainda capaz de renovar continuamente seus conhecimentos em prol da valorização do capital.

Estas novas exigências também chamadas de “competências” se caracterizam pelo conhecimento de novas linguagens, informática, protocolos de gestão, matemática e microeletrônica. A imposição destas novas competências ao trabalhador se relaciona também com o processo de globalização dos mercados mundiais e particularmente também com a recente revolução tecnológica representada pela internet e a nanotecnologia. As novas competências adquiridas pelo trabalhador flexível toyotista não se referem à apropriação de um conhecimento profundo capaz de levá-lo a autonomia, mas diz respeito basicamente a um saber superficial e pragmático, capaz de qualificar minimamente e momentaneamente o trabalhador, adequando-o aos modismos e ao pragmatismo do mercado.

Uma das principais características da ideologia toyotista é a captura da subjetividade do trabalhador, estando corpo e mente integrados e subsumidos à produção capitalista. O consentimento operário e a cooptação do trabalhador formam a chave para o controle e a super-exploração da classe trabalhadora e ainda para a otimização da produção. O pensamento, a postura e toda subjetividade humana são de forma coercitiva e violenta canalizadas para cooperarem com a reprodução do capital, auxiliando e colaborando para o melhor funcionamento e na maior lucratividade da fábrica ou empresa. A alma, o consciente, o inconsciente, a imaginação e o próprio tempo de sono do trabalhador são obrigados a se sujeitarem e a participarem integralmente da produção do mais valor.

A cada reestruturação produtiva do capital exige-se a formação de um novo tipo de trabalhador, logo a educação em geral, que no sistema capitalista de produção tem a função de formação de mão de obra barata que atenda as exigências do mercado, irá de pronto sofrer também a sua própria reestruturação através de reformas curriculares, construção de parâmetros curriculares nacionais, aligeiramento dos conteúdos, fragmentação das disciplinas e também na criação e extinção de cursos. A reestruturação da educação sempre vai a reboque da reestruturação do mercado. Enquanto as fábricas e as empresas passam a exigir um novo tipo de trabalhador polivalente, flexível, altamente precarizado, eficiente e submisso, a educação institucional em contrapartida, cumprirá o seu fiel papel de formar e equipar o trabalhador com estas novas demandas e características, mesmo sendo para um mercado altamente precarizado e caracterizado pelo desemprego estrutural. As contínuas reformas curriculares permitem a efetivação das adequações necessárias para formação  e capacitação do trabalhador, de forma a impor-lhe a entrada no mercado flexível, instável e precarizado. Estas constantes e contínuas mudanças curriculares, que vão desde a educação básica aos cursos universitários de graduação e de pós-graduação, evidenciam a estreita correlação entre educação e mercado dentro da sociedade capitalista, ratificando a sua “nobre” função em formar mão de obra barata para o trabalho precário, o subemprego e para o desemprego estrutural.

Percebe-se assim, que diante das novas investidas do capital globalizado sobre a educação, ocorre uma total reconfiguração de disciplinas e de conteúdos,  seja dentro da escola ou nas próprias universidades. Diante das  novas demandas e exigências do mercado vão sendo criados novos saberes e disciplinas dentro das matrizes curriculares que convergem basicamente para a formação das chamadas novas competências do trabalhador flexível, como a inclusão de informática, matemática financeira, línguas estrangeiras no ensino médio, e em paralelo outros conteúdos clássicos ou mesmo componentes curriculares importantes vão sendo completamente extintos ou tendo a sua carga horária subtraída ao máximo, como foram o caso das disciplinas de Educação Física, Artes, Filosofia, História e Geografia.

 Dentro do novo contexto da chamada reestruturação produtiva do toyotismo se privilegiaram as disciplinas estritamente voltadas às demandas imediatas do mercado globalizado, como as linguagens, as matemáticas e a informática. Aqueles outros saberes e conhecimentos tradicionais que não atendiam diretamente a esta nova formação pragmática, empreendedora, flexível e polivalente se tornam secundarizados e totalmente descartáveis dentro dos novos currículos construídos e adequados à esta nova formação do trabalhador. Como exemplo atual se destaca a própria disciplina de Educação Física, e ainda as Artes, Geografia, História e a Filosofia. Estas disciplinas vem sofrendo ao longo dos últimos anos a diminuição de suas cargas horárias nas escolas diante da  implementação das políticas públicas educacionais de origens neoliberais, na forma de parâmetros curriculares nacionais e as consequentes mudanças nas matrizes curriculares tanto nas escolas quanto nas universidades.  Ressalta-se ainda a própria exclusão total destas disciplinas nos currículos escolares, pois não atendem às características exigidas na formação do novo tipo de trabalhador flexível, polivalente, servil e útil do século XXI. O interesse do mercado flexível de cariz toytista é um trabalhador altamente submisso, dócil, servil e alienado, que colabore pró-ativamente na produção do mais valor, cooperando para a reprodução do capital e para a própria exploração e aniquilamento do trabalhador. Sob o olhar do capital, não é importante o conhecimento da história, dos saberes filosóficos, das produções artísticas ou a aprendizagem da cultura corporal, pois todos estes conteúdos, na ótica do capital, oneram e produzem mais gastos para a educação formal, além de demandar também mais tempo para a preparação do trabalhador, tendo a máxima capitalista: “Tempo é dinheiro”. E além de tudo, quanto mais alienado o trabalhador, melhor será o controle e mais efetiva a sua exploração.

A ênfase que se tinha na formação do trabalhador fabril do século XIX e posteriormente na organização fordista do século XX com características de formação de um corpo forte, disciplinado, obediente e saudável vai perdendo força para a formação de um corpo de novo tipo, ou seja, pró-ativo, polivalente e  para o desempenho. As novas exigências agora passam a ser uma atitude cooperativa, pensamento colaborativo com a produção, operar plataformas virtuais, apertar botões e vigiar as máquinas robotizadas. Secundarizando assim aquela antiga Educação Física de outrora, ligada à aptidão física e ao paradigma do corpo forte, saudável e disciplinado.

A disciplina de Educação Física, assim como as demais já citadas, sofreram ao longo das primeiras décadas deste século as consequências deste rápido processo de esvaziamento de conteúdos e da multiplicação dos chamados “currículos mínimos”, que foram construídos em larga escala, principalmente na época da ditadura militar brasileira, mas que voltam à cena neste atual século XXI, período marcado pela precarização da vida e de barbárie no trabalho. Porém, a Educação Física sofre também outros ataques, como por exemplo, a mercantilização do corpo através da indústria do fitness, através da promoção da ditadura da beleza e do culto ao corpo como formas de ampliação do mercado do mundo fitness/welness, utilizando-se da privatização das práticas corporais nas formas de mega academias de ginástica. Assim sendo, as práticas corporais dentro das aulas de Educação Física na escola vão sendo deslocadas para o campo não escolar, ou seja, para o mercado privado e excludente das academias de ginástica, que até então, experimentavam um período de grande expansão em todo o mundo antes de iniciar a pandemia do novo coronavirus.

 

Os velhos desafios da Educação Física e o novo coronavirus

 

A pandemia do novo coronavirus não somente descortina os velhos problemas e desafios da educação física, mas também potencializam essas nossas mazelas de forma exponencial. Aumentaram os problemas relacionados ao chamado Ensino à Distância (EaD), que impossibilita a práxis pedagógica das atividades relacionadas à cultura corporal, através das limitações e da precariedade das plataformas digitais de mediação de aulas, e em paralelo fez explodir um problema que já existia antes da pandemia, ou seja, a exclusão digital de milhões de estudantes que ficaram sem acesso às chamadas aulas on-line. Não somente isso, mas as aulas de educação física eram sempre planejadas e executadas com prioridade aos contatos e se realizavam normalmente em aglomerações humanas. É fato porém, que não existem aulas de futebol, basquete, voleibol, natação, dança, ginástica sem os centenas de milhares de contatos entre alunos. Aglomerações e contatos são essenciais em aulas de educação física. Não é à toa ou mera coincidência que as aulas de educação física são as preferidas de crianças e adolescentes nas escolas brasileiras. Os contatos e aglomerações são as marcas mais importantes da humanidade. Sem os contatos físicos e as aglomerações sociais não existiriam a história e nem a vida humana na Terra. O grande dilema não diz respeito apenas à realização do distanciamento social, que é fundamental e necessário para a diminuição de contágios e consequentemente de mortes pelo vírus Sars-Cov-2, mas sim pelo total descontrole e tragédia que vem se configurando a  pandemia no Brasil. Países que conseguiram conter a pandemia durante o ano de 2020, mas que atualmente em 2022, enfrentam as chamadas terceiras e quartas ondas mais intensas do que aquelas. As vacinas tem cumprido bem o seu papel, porém, somente ações farmacológicas ou regras de biossegurança aplicadas de forma isoladas tem se mostrado ineficazes no combate às altas transmissões virais. 

Os problemas atuais não dizem respeito apenas à educação física ou à educação brasileira em geral, este problema atual do descontrole da pandemia se tornou um problema mundial, que correlaciona saúde, educação, economia, cultura, política, ecologia e a vida de mais de bilhões de pessoas que moram em países pobres como o Brasil, e que estão em grande risco, neste atual contexto de pandemia do vírus Sars-Cov-2.

A discussão atual não deve jamais ser sobre quais os melhores critérios de biossegurança para a realização de aulas de educação física, matemática ou de geografia. A grande questão é a total impossibilidade de reinício de qualquer atividade escolar no momento em que a maioria das crianças e adolescentes ainda não foram vacinados. Segundo os dados apresentados pelo próprio Ministério da Saúde (www.saude.gov.br), os óbitos por covid-19 entre crianças representam 0,4% do total de mortes, ou seja, mais de 2.500 crianças e adolescentes já perderam a vida na pandemia, este que é um dos maiores índices de mortalidade infantil por covid-19 em todo o mundo. Tais números cresceram no ano de 2021 quando iniciou a maior flexibilização das atividades econômicas e principalmente com a abertura das escolas e creches em todo o Brasil.  O reinício das aulas, sem a vacinação de crianças e adolescentes pode ajudar também a iniciar uma nova terceira onda de contaminações, como ocorre hoje em grande parte dos países europeus.

Repensar sobre o futuro da educação física não se resume apenas em definir ou escolher os protocolos mais seguros e eficazes para a realização das atividades, mas é levar o debate muito além disso, é refletir também sobre a precarização e sucateamento das escolas públicas, onde muitas não possuem água nos banheiros para lavagem das mãos, é discutir sobre o processo de exclusão digital que faz aumentar ainda mais o abismo entre ricos e pobres, é discutir sobre a saúde emocional e física das crianças em isolamento social, debater também sobre o desemprego e a fome que atinge milhões de famílias em todo o país.

Sabemos que atualmente uma voraz e rápida terceira onda de contágios avança sobre países de diversas regiões do planeta, mesmo em países com a cobertura vacinal bastante adiantada, como Portugal, Espanha, Alemanha, e que tomaram as medidas corretas no seu devido tempo, porém, os índices de contágios (não de óbitos graças às vacinas) voltaram a subir de forma drástica e descontrolada nestas mesmas regiões, provando que o vírus é muito mais perigoso do que se imaginava. Entretanto, estes países, além de terem reduzido o número de óbitos e de contágios durante o primeiro semestre deste ano, conseguiram ganhar mais tempo para lidarem com a pandemia, preparando melhor o sistema de saúde, entendendo a complexidade do comportamento do vírus e os procedimentos mais adequados de tratamento aos infectados. 

Sendo assim, fica claro que não se deve abrir escolas sem a vacinação das crianças e adolescentes em Goiás. Os números, mesmo sendo subnotificados, apontam que os contágios ainda estão totalmente fora de controle na capital e cidades do interior de Goiás. A questão não é qual o protocolo de segurança mais seguro e adequado que se deve construir para um projeto de aulas de educação física, mas sim promover a abertura das creches e escolas com o reinício das aulas somente após a vacinação completa de crianças e adolescentes.

Segundo os critérios criados pela própria OMS (Organização Mundial de Saúde) e que podem nortear a abertura de escolas são: o primeiro critério, segundo a OMS, diz que a cidade ou região deve possuir um sistema de saúde capaz de identificar, testar, isolar, rastrear todos os contatos e tratar as pessoas infectadas. O segundo critério é a garantia de que os locais de trabalho e os demais ambientes  frequentados por todas as pessoas sejam locais seguros  contra os contágios. O terceiro critério diz respeito a adoção de barreiras sanitárias para atender os casos de pessoas já contaminadas e cuja origem seja de fora da cidade ou do país (casos importados). O quarto critério é o controle de eventuais surtos em locais estratégicos como hospitais e casas de repouso. O quinto critério é a adoção de medidas preventivas para a conscientização da população com relação à pandemia e suas formas de contágio. O sexto e último critério sugere que a reabertura e flexibilização das atividades econômicas, sociais e culturais  devem ocorrer somente quando as taxas de contágios estiverem em queda, ou seja, somente quando a pandemia estiver controlada.

Duas regras importantes para a flexibilização das atividades e que não foram listadas pela OMS é a adoção de políticas econômicas robustas de fomento para as empresas e para todos os trabalhadores de atividades não essenciais que foram obrigados a participarem do isolamento social, e ainda a cobertura vacinal completa (>90% da população).

Assim sendo, vemos que em Goiás e em Goiânia, os governos não adotaram e continuam  não adotando de forma integrada nenhuma dessas medidas para a reabertura. O que presenciamos são flexibilizações precoces e aligeiradas que são os grandes responsáveis pelo número exagerado de contágios e mortes. E os professores de Educação Física e todos os demais trabalhadores em geral, estão arriscando as suas próprias vidas para a manutenção diária de suas necessidades materiais e financeiras, porque não existe no Brasil nenhuma ação coordenada para a promoção do controle da pandemia por parte dos governos (Municipal, Estadual e Federal), e somente priorizar o programa de vacinação será uma ação insuficiente frente à complexidade da pandemia e de suas consequências. 

As academias do Brasil já estão funcionando na maioria das cidades e capitais do país e foram criados diferentes  protocolos de saúde e segurança em vários estados para evitar o contágio entre os frequentadores destes estabelecimentos comerciais, como uso de máscaras, tapetes sanitizantes, álcool em gel, distanciamento entre os equipamentos, criação de horários alternativos e de forma escalonada. Porém, o que se observa em muitas academias de Goiânia é o total descumprimento destes protocolos sanitários. Também em conversas e entrevistas com professores de educação física que trabalham em academias, há relatos de muito estresse e apreensão pelo medo do contágio, pela sobrecarga de trabalho, desvio de funções quando professores tem que medir a temperatura de alunos na entrada da academia, grande número de alunos por turmas, que impossibilita o distanciamento social, alunos com a máscara no queixo e etc. A arquitetura da maioria das academias, que não permite a circulação natural do ar, e as intensas atividades aeróbicas e anaeróbicas realizadas pelos alunos no seu interior, infelizmente tornam as academias de ginástica os locais mais propícios para o contágio pelo vírus Sars-Cov-2. Haja visto que uso de termômetros para medição de temperatura corporal e tapetes sanitizantes são totalmente inócuos para combate da Covid-19, o que de fato protege contra os contágios são o uso adequado das máscaras, o distanciamento social seguro e a vacinação, destacando que as vacinas evitam casos graves e mortes, sendo que está também comprovado que pessoas vacinadas transmitem menos o vírus do que as não vacinadas.

Todas essas questões devem ser debatidas e levadas em consideração, evitando cair naquela vela armadilha da falsa dicotomia “Saúde X Economia”. O que se coloca na mesa é a realidade de um país que não possui nenhuma política pública nacional, coordenada e integrada no combate ao covid-19 e que atualmente aposta erroneamente apenas na vacinação, como a única arma de combate à pandemia. Ou fazemos esse debate hoje ou seremos cúmplices das necropoliticas praticada pelo Estado Brasileiro no atual contexto da pandemia do novo coronavírus. E essa discussão não deve se circunscrever apenas ao debate educacional, mas ao engajamento político em prol das milhares de vidas de brasileiros que estão sendo abreviadas pelo atual modelo de mundo em que vivemos, caracterizado essencialmente pela exploração do homem pelo homem e pela destruição insaciável da natureza. O que está em jogo é a nossa própria sobrevivência como seres humanos nas circunstâncias da barbárie atual.

 

 

 

                 

Bibliografia

 

BRASIL. Lei nº13.415 de 16 de fevereiro de 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13415.htm. Acesso em: 10 de maio. de2017.

______. Medida Provisória nº 746 de 22 de setembro de 2016. Disponível em : http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=48601-mp-746-ensino-medio-link-pdf&category_slug=setembro-2016-pdf&Itemid=30192 . Acesso em: 10 de maio de 2017

NOZAKI, H.T. O Mundo do Trabalho e o Reordenamento da Educação Física Brasileira. Revista da Educação Física UEM. v. 10 n. 01,n p. 3-12 1999.

SOARES, C.L. Imagens do Corpo “Educado”: um olhar sobre a ginástica no século XIX. In: FERREIRA NETO, A. Pesquisa Histórica em Educação Física. Vitória: CEFD/UFES, 1997.

 

2 comentários:

  1. Importantíssima explanação. Uma vez que podemos observar as mudanças constantes que a Educação Física sofreu em vem sofrendo em detrimento do sistema e cenário a qual esta instaurado. é perceptível a volatilidade desta matriz, uma vez que se desdobra sempre em detrimento do sistema, seja na perspectiva de criação do corpo do guerreiro nos primórdios, seja na perspectiva de aprimoramento do corpo do trabalhador. As vezes referida, as vezes reprimida, a Educação física caminha a passos largos na busca por sua instauração social, mas sempre perde sua identidade quando se coloca a merce da sociedade de forma volátil.

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  2. A Educação Física passa por uma "crise" a miitos anos e agora com a pandemia foi ainda mais desvalorizada. Muitas escolas conhecidas, deixaram de passar o ensino da Educação Física ja q esta não é tão "relevante"

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