Escolas na Pandemia: o EaD e a precarização do trabalho docente

 



(Escrito por Renato Coelho)

A fim de compreendermos o atual processo de intensificação do trabalho docente e o aumento acelerado da precarização do trabalho nas escolas (públicas e privadas) em Goiás durante a pandemia, faz-se antes necessário entender o contexto e a dinâmica da inclusão do Ensino à Distância nas escolas e também destacar a real situação dos professores diante das limitações e complexidades de um novo modelo de ensino mediado por tecnologias virtuais, cuja implantação fora necessária no contexto de pandemia, porém, imposta de forma unilateral, burocrática e sem consulta ou diálogo com alunos, professores e as famílias envolvidas no processo.

No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) elevou o estágio de contaminação pelo novo coronavírus à pandemia. A chamada pandemia de covid-19, segundo especialistas da área da saúde, foi deflagrada de forma tardia pela OMS por questões geopolíticas e por pressão de interesses econômicos, tal atraso provocou consequências catastróficas e irreparáveis no mundo todo, haja visto a rapidez de propagação e letalidade do vírus Sars-Cov-2. Em menos de três meses o vírus foi capaz de dar a volta ao mundo e atingir a todos os países do planeta. A intensa movimentação de pessoas e de mercadorias em um mundo globalizado ajudaram a acelerar o processo de propagação, potencializado ainda mais por posturas negacionistas de governantes e gestores de vários países. A proliferação de uma doença multissêmica  causada por um vírus desconhecido tem atingido e impactado sobremaneira e de forma mais violenta países e regiões pobres, onde a falta de assistência médica e a miséria  se tornam obstáculos e barreiras para o enfrentamento eficaz contra a pandemia.

Em Goiás, o governo estadual, através do Decreto n. 9633 de 13 de março de 2020 determinou a situação de emergência em Saúde Pública do Estado de Goiás em razão da pandemia do novo coronavirus, e entre as várias medidas contidas no decreto estadual havia a obrigatoriedade de fechamento de todo o setor produtivo e também a paralisação de todas as instituições educacionais na forma presencial a partir do dia 18 de março de 2020, ou seja, creches, escolas e universidades, públicas ou privadas, deveriam suspender todas as atividades presenciais na data prevista. Em seguida, todos os municípios do estado também emitiram decretos similares regulamentando as ações de enfrentamento à pandemia no âmbito local, paralisando as atividades educacionais presencias de forma em geral. E no dia 15 de março o Supremo Tribunal Federal, através de sessão em vídeo conferência, delega aos governos estaduais e governos municipais o poder e a autonomia para criação de medidas de controle sobre as regras de isolamento social, cabendo ao governo federal a coordenação nacional sobre o combate ao novo coronavirus e o repasse de verbas.

Ainda no dia 15 de março a Secretaria Estadual de Saúde (SES-GO) publica a nota técnica n.1-2020, que recomendava também o fechamento de todas as instituições educacionais por 15 dias, em virtude da pandemia do novo coronavírus. Já o Conselho Estadual de Educação (CEE-GO) através do seu parecer 02-2020 autoriza o regime especial de aulas remotas (EaD) em substituição às aulas presenciais em todo o sistema educativo do Estado de Goiás. A partir de então, o sistema de aulas virtuais e à distância surge como modelo emergencial e necessário para continuidade das atividades pedagógicas de escolas e universidades em todo o Estado de Goiás.

Todos os professores, alunos e pais de alunos tiveram que se adaptar ao novo formato de aulas remotas que passou a ser implementado de forma provisória, emergencial e aligeirada pelas Secretaria Estadual de Educação (SEE-GO) e também pelas secretarias municipais de educação localizadas em todas as cidades de Goiás. Além de aligeirada e improvisada, a organização e decisões sobre a mediação de aulas por tecnologias virtuais foi realizada na maioria das vezes por escolas públicas sem a participação dos professores ou pais de alunos.  Grande parte dos professores não dispunham na época de tecnologias adequadas para a realização das aulas e também muitos não possuíam se quer qualquer intimidade com as chamadas tecnologias digitais de ensino. Não foram ofertados pelas secretarias de educação municipais ou pelo governo estadual qualquer forma de subsídios para a aquisição de computadores e instalação de internet de qualidade nos lares dos docentes, tão pouco foi oferecido capacitação ou formação continuada adequada e em tempo hábil na área de informática para a classe docente. Se houve imensa dificuldade de adaptação dos professores ao chamado modelo de aulas remotas, imagina então para a maioria dos alunos pobres de escolas públicas localizadas nas periferias das cidades goianas. Os relatos e testemunhos são de professores sobrecarregados e exaustos de atividades on-line, alunos abandonando as aulas e muitas reclamações dos pais que afirmam não terem tempo ou disponibilidade de auxiliar os filhos nas atividades escolares.

Os inúmeros relatos em jornais e em redes sociais são de professores ministrando aulas via grupos de whastsapp, onde os alunos acessam os conteúdos das aulas através dos celulares de seus  pais, haja visto que a maioria são oriundos de famílias pobres e moradores das periferias das cidades em Goiás, não possuindo computadores ou internet instalada em seus lares, restando apenas os celulares dos pais que passaram a ser compartilhados com os vários filhos nas atividades escolares remotas, mas somente quando havia disponibilidade financeira para compra de créditos para utilização dos celulares.

Segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad 2018 - IBGE) o país tem um contingente muito grande de excluídos digitais, onde cerca de 46,96 milhões, ou seja, 25% da população não tem acesso à internet , e a cada cinco lares no Brasil, um (01) ainda não possui internet. Nas áreas rurais ou em regiões onde a renda da população é mais baixa, as diferenças aumentam ainda mais. Segundo essa mesma pesquisa do IBGE, apenas cerca de 78,3% da população possui celular com acesso a internet, sendo que 5,1% dos lares brasileiros não possuem telefone fixo ou móvel. E é exatamente essa a realidade familiar de grande parte dos alunos das escolas públicas em Goiás. A pandemia vem novamente para desmascarar a triste realidade de exclusão e de pobreza em que vive grande parte da população brasileira, e além disso, o EaD que passa a ser implementado dentro da pandemia em Goiás vem provocando também o aumento das desigualdades entre aqueles que possuem acesso à internet de qualidade e os que não possuem acesso. Desta forma ocorre uma desigualdade de oportunidade nos processos de ensino-aprendizagem e ainda uma falta de equidade no acesso a educação que deveria ser igualitária e ainda um direito de todos.



Tabela - Pnad 2018 (IBGE)


A exclusão digital passou a ser apenas um dos empecilhos e problemas enfrentados por alunos e professores durante este período de pandemia em Goiás. Além da luta por acesso à uma internet de qualidade para a realização do trabalho e de todas as demais atividades educacionais, tem ainda o enfrentamento diário contra o vírus Sars-Cov-2, numa frenética e contínua luta para se manter vivo. Em um contexto assustador de pandemia, numa segunda onda de contágios alcançando novamente a marca de quas mil mortes diárias provocadas pela falta de assistência médica, onde alunos e professores presenciam quase que cotidianamente a perda de renda por questões do desemprego familiar, abalos emocionais causados por mortes de parentes ou amigos próximos, tudo isso ao final acaba gerando um grande estresse e fadiga em todos, e exatamente num momento crítico da pandemia onde o vírus continua descontrolado e se propagando de forma cada vez mais rápida e intensa.

Nas escolas públicas em Goiás, com os baixos salários, a massificação de alunos por turma, as cargas horárias excessivas, o não pagamento do piso salarial, a violência dentro das escolas e a total falta de valorização docente, já eram componentes que antes mesmo da pandemia serviam como potencializadores da precarização do trabalho do professor. Entretanto, neste novo contexto de pandemia, caracterizado pelo trabalho remoto, a precarização e intensificação do trabalho aumentaram consideravelmente, e tem levado vários professores de escolas à exaustão e ao adoecimento por doenças psicossomáticas. O trabalho remoto da forma em que está colocado e em tempos de pandemia não pode ser considerado um privilégio diante daqueles que não tem outra opção, a não ser realizar o trabalho presencial ou essencial. O que se observa na prática cotidiana dos professores que ministram aulas em EaD durante o período de pandemia é apenas uma imposição burocrática e legalista de gestores de escolas e das secretarias de educação para o simples cumprimento de conteúdos e cargas horárias das disciplinas escolares, sem respeitar o tempo e o processo de ensino-aprendizagem num contexto complexo e trágico de uma pandemia. O que se observa atualmente é uma cobrança sem limites em cima dos professores e também dos alunos para transmissão e efetivação de conteúdos tradicionais, que na maioria das vezes não conseguem dialogar ou contextualizar o aluno aos dilemas, dficuldades e desafios do tempo presente, ou seja, de um ensino em tempos de pandemia. É como ensinar física atualmente sem falar de crescimento exponencial numa pandemia; falar de matemática sem relacionar os números aos pontos de inflexão da curva de contágios; comentar biologia sem falar de morcegos e vírus; discutir sociologia sem interpretar as relações entre destruição da natureza, capitalismo e pandemia; ensinar educação física sem correlacionar o cancelamento dos jogos olímpicos e a pandemia ou analisar futebol sem citar os estádios sem as torcidas. Não faz sentido ensinar conteúdos tradicionais nas escolas sem abranger o momento histórico marcado pela pandemia e as suas consequências globais. Percebe-se assim que o tempo, as metodologias, os conteúdos e os temas das aulas devem ser sim modificados e ressignificados para o momento atual, e que o ensino não pode mais se pautar nos paradigmas daqueles anteriores à pandemia, pois o ensino virtual jamais poderá substituir o ensino presencial, ele é apenas um instrumento pobre, vazio, limitado e emergencial e que não pode ser generalizado ou priorizado, porém, ele se faz necessário a fim de se evitar os contágios e as aglomerações em salas de aulas, daí a importância e urgência em reinterpretar  o ensino em tempos de pandemia. Pois, o mundo jamais será o mesmo a partir de dezembro de 2019, com a descoberta do novo coronavírus, não existirá jamais um "novo normal", e nem tão pouco as escolas ou as aulas serão como antes e nem devem ser. Faz-se então relevante ouvir os professores e os alunos para se construir um novo processo de ensino e aprendizagem dialógico, humanizado e contextualizado, capaz de trazer respostas e soluções a este novo tempo inaugurado pelo vírus Sars-Cov-2, que virou o mundo de ponta cabeça e colocou em xeque a própria ciência moderna, expondo as suas contradições, seus limites e contrastes. Exigir as mesmas coisas, as mesmas cargas horárias, os mesmos conteúdos, a mesma rotina dentro da velha burocracia escolar é subestimar o poder e a letalidade do vírus, e ao mesmo tempo é subestimar também a inteligência, a criatividade e os saberes de professores e alunos, que juntos terão que lutar para construírem um modelo novo e diferente de aprendizagem e de escola capaz de superar as limitações e a miséria do ensino virtual, que seja também capaz de anular a precarização do trabalho e as imposições burocráticas de uma velha escola anterior à pandemia que ainda insiste em querer existir e em apenas formar mão de obra barata, no mercado da uberização do trabalho, onde o vírus apenas escancara ainda mais o submundo do desemprego e da informalidade.

 

A UEG no Contexto da Pandemia do Novo Coronavírus: a exclusão digital e o aumento da precarização do trabalho


 
Escrito por G. C. e Silva (UFG);   R. Coelho (UEG)

A UEG E UM POUCO DE SUA HISTÓRIA

 Para se compreender os últimos acontecimentos na UEG durante o atual período de pandemia do vírus Sars-Cov-2, e sobre o exponencial processo de exclusão digital de alunos nos vários campi da universidade espalhados por diferentes cidades do estado de Goiás, faz-se necessário antes entender o seu processo histórico de surgimento durante o final da década de 1990 e  também sobre a sua dinâmica de funcionamento sempre correlacionada aos interesses patrimonialistas e  político-partidários que envolvem a universidade e a classe política goiana.

A Universidade Estadual de Goiás (UEG) surge no ano de 1999 durante o primeiro mandato do governo de Marconi Perillo (PSDB) em Goiás (1999-2002), através da Lei Estadual 13.456 de 16 de abril de 1999, com a fusão da antiga UNIANA de Anápolis, com mais 28 faculdades isoladas e localizadas em distintas regiões de Goiás. Porém, destas 28 Instituições de Ensino Superior (IES), apenas 13 existiam de fato, as demais existiam apenas no papel (CARVALHO 2013). Durante todos os períodos de sua existência, a UEG sempre conviveu com gestões de governos neoliberais, inclusive como a do próprio governo atual de Ronaldo Caiado (DEM), marcado pela continuidade das políticas de gestão essencialmente autoritárias e clientelistas, que transformam a universidade em instrumento de barganha política com os variados grupos políticos de todas as regiões do estado.

Ainda no ano de sua criação, em 1999, no governo de Marconi Perillo, houve várias tentativas para privatização da universidade, com propostas de pagamento de mensalidades aos estudantes da UEG, sob o pretexto de promover novas formas de custeio para a instituição. Tal proposta de privatização da UEG foi sugerida pelo próprio governador em exercício, porém, foi logo rechaçada e combatida pela própria comunidade universitária. (CARVALHO, 2013).

A UEG nasce com uma proposta de interiorização do ensino superior em Goiás, na forma multicampi e abarcando todas as regiões do estado. Durante as duas primeiras décadas deste século, a UEG sofreu um vertiginoso e anômalo processo de expansão a fim de atender apenas as demandas e aos interesses político-eleitorais dos governos estaduais, crescimento este que não seguiu nenhuma diretriz ou planejamento educacional que de fato contemplasse as verdadeiras demandas locais e os reais interesses para a formação de conhecimento e produção de saberes nas várias regiões do estado de Goiás. O seu crescimento vertiginoso e a expansão anômala seguia uma lógica que atendia de forma pragmática e populista às demandas politico-eleitorais de governadores  e políticos locais, de forma a contemplar apenas aos interesses de suas bases eleitorais, não atendendo estudos e planejamentos técnicos sobre as reais e importantes necessidades da população goiana, no que tange a oferta e abertura de novos cursos ou campi nas cidades do interior de Goiás. A UEG passa então de 13 campi, que existiam desde a sua inauguração em 1999, para o número de 44 campi no ano de 2018. Esse abrupto aumento de mais de 300%, foi realizado em menos de duas décadas, caracterizando uma expansão anômala e descontrolada, pois o seu orçamento nunca acompanhou essa mesma proporção de crescimento, permanecendo sempre com investimentos de apenas 2% da arrecadação estadual, porém, esse pequeno percentual nunca era repassado integralmente à UEG.

Seguindo sempre essa lógica clientelista e populista de crescimento, sem aumento proporcional de novos recursos e de investimentos, e sem planejamentos e estudos adequados, os novos campi são inaugurados sem estruturas mínimas de funcionamento, ou seja, sem bibliotecas, sem salas de informática, sem internet, sem restaurantes universitários e sem professores efetivos. A maioria dos funcionários e professores eram contratados pela universidade via processos seletivos simplificados, chegando a números absurdos como em 2010, onde a maioria dos funcionários técnicos administrativos possuíam contratos temporários e mais da metade dos docentes também possuíam contratos temporários, caracterizando uma total precarização do trabalho na universidade.

Durante o ano de 2012, já no terceiro mandato do governo de Marconi Perillo (2011-2014), a UEG sofre um processo de intervenção, com a imposição de um interventor na reitoria nomeado pelo próprio governador. Além da intervenção na reitoria, ainda em 2012 o governador também impõe um novo estatuto para a universidade, que foi aceito e chancelado pelo Conselho Universitário sem diálogo ou participação da comunidade, constituindo-se assim em um estatuto imposto de forma unilateral e autoritária pelo governo. Neste estatuto é inserido pela primeira vez na história da universidade a chamada “lista tríplice”, que outorga ao governador o direito de escolha dos cargos de diretores de campi e também de reitor, a partir da indicação de uma lista com três nomes de candidatos. Essas ações intervencionistas constantes demonstram a falta de autonomia da universidade e a postura patrimonialista dos gestores e políticos sobre a instituição.

A precarização e o sucateamento da UEG chegaram a níveis tão alarmantes que no ano seguinte, em 2013, vários cursos foram paralisados por falta de condições de funcionamento, seja por falta de professores, por falta de laboratórios ou mesmo por falta de estruturas mínimas como insumos ou equipamentos de ensino. A falta de concurso público, a falta de plano de carreira docente e ausência total de políticas de assistência estudantil (como a inexistência de restaurante universitário, moradia estudantil e também a escassez total de bolsas estudantis) fez surgir em abril de 2013 a maior greve da história da UEG, que durou 89 dias. A situação caótica da universidade levou à deflagração espontânea de uma greve constituída de forma auto-organizada, independente e conduzida pela ação direta por professores, alunos e funcionários da universidade, sem a participação de partidos ou de sindicatos. Com o final da greve e o  atendimento de todas as reivindicações da pauta de lutas, vieram a partir de então novos concursos públicos para docentes e técnicos administrativos, a construção do primeiro restaurante universitário da UEG, reformas de campi, aprovação do novo plano de carreira docente, a criação de bolsas permanências, bolsas de extensão e bolsas de pesquisa para os estudantes. A greve demonstrou que o único caminho para a melhoria das condições de trabalho e o aumento da qualidade de ensino na UEG era através da mobilização e da luta coletiva de professores, estudantes e de funcionários.

Já em 2014, a chamada reforma universitária da UEG, muda radicalmente (para pior) os currículos de todos os cursos (currículo 2015/2), e mais uma vez sem a participação da comunidade universitária nos debates ou na construção das novas diretrizes curriculares. O resultado foi a criação de um novo currículo pautado nos princípios do chamado “currículo mínimo”, dentro de paradigmas tecnicistas, com conteúdos aligeirados, fragmentados e contemplando apenas uma formação pragmática voltada meramente a atender o instável e volátil mercado do sub-emprego e do desemprego. As decisões da universidade sempre foram mantidas centralizadas e sem nenhuma relação dialógica com a comunidade universitária, realçando as relações hierarquizadas, burocratizadas e verticais dentro da UEG.

No ano de 2019, o médico e senador Ronaldo Caiado (DEM), assume através de eleições, o governo do estado de Goiás, e segue também a mesma lógica e os mesmos princípios de seus antecessores para com a gestão e administração da UEG, com ideais populistas e eleitoreiras. Ainda no primeiro ano de seu governo, Ronaldo Caiado destitui o Conselho Universitário e também substitui o reitor que possuía ligação política com o ex-governador Marconi Perillo (PSDB), colocando em seu lugar novos interventores na reitoria em Anápolis. E neste mesmo ano, o governador Ronaldo Caiado impõe a chamada reestruturação organizacional da universidade e mais uma promove mudanças estruturais na organização da UEG e sem a participação da comunidade universitária, promovendo a demissão de mais de mil professores e funcionários em regime de contratos temporários e sem a contra partida de realização de novos concursos públicos, gerando aumento da precarização do trabalho e um maior sucateamento da UEG. Essa nova reforma administrativa e organizacional da universidade realizada em 2019, com a extinção de campi, criação de institutos e unidades universitárias, teve a intenção de intensificar a centralização e a burocratização das relações dentro da universidade, no intuito de aumentar o controle das decisões por parte do governo sobre as questões internas da universidade.

Vemos assim que a Universidade Estadual de Goiás, desde as suas origens, vem sendo utilizada pelos gestores e governos como instrumento político-eleitoral durante as duas décadas de sua existência, priorizando ações clientelistas e os caprichos populistas de governantes, ficando sempre em segundo plano temas fundamentais como ensino, pesquisa, extensão,  assistência estudantil, plano de carreira docente, investimentos em tecnologias e em infraestrutura. Estes temas importantes são colocados em pauta pelo governo apenas durante as mobilizações e greves promovidas por estudantes, professores e funcionários da instituição.

Mas, com a chegada da pandemia do novo coronavírus em 2020, os problemas estruturais da UEG já citados anteriormente, e que sempre foram procrastinados pelos governos estaduais que se sucederam, como, por exemplo, a falta de investimentos na universidade, a ausência de infraestrutura de laboratórios e prédios e a carência de assistência estudantil, problemas estes que estão sendo potencializados no atual contexto caótico da pandemia, acarretando maior precarização e intensificação do trabalho, adoecimento docente, aumento da evasão estudantil e a multiplicação da exclusão digital na universidade.

 

A UEG E A PANDEMIA DO NOVO CORONAVÍRUS: O AUMENTO DA PRECARIZAÇÃO E DA EXCLUSÃO DIGITAL

A destruição acelerada da natureza em um mundo globalizado, a intensificação da precarização do trabalho e da vida humana pelo sistema capitalista, serviram de estopim para o  surgimento descontrolado da pandemia do vírus denominado Sars-Cov-2.
A mercantilização dos serviços básicos de saúde e a total ausência de assistência médica aos trabalhadores, comprovam o total descompromisso e desinteresse do Estado pela saúde dos mais pobres e necessitados, culminando com  a promoção do genocídio de milhões de trabalhadores e trabalhadoras pobres em todo o mundo durante a pandemia, ratificando apenas que neste modelo atual de sociedade, pautado na exploração insaciável do homem pelo homem e pela exploração da natureza, o lucro do capital sempre está acima das vidas humanas. 
A pandemia do novo coronavírus não somente descortina as desigualdades, as misérias e a super-exploração dos trabalhadores em todo o mundo, assim como também as potencializam. As flexibilizações das leis trabalhistas, as reduções salariais, o desemprego, o trabalho remoto e o ensino à distância foram potencializados durante a pandemia do Sars-Cov-2 e em consequência temos o aumento das desigualdades sociais, da miséria, da exclusão social, da discriminação e da precarização do trabalho e da vida humana.
O vírus Sars-Cov-2 não é um vírus chinês, como relatam falsas mensagens replicadas continuamente nas redes sociais, é na verdade um vírus pertencente à natureza e assim como todos os demais vírus, são fundamentais para o equilíbrio dos ecossistemas e da vida na Terra. Os efeitos nefastos da pandemia são consequências do modo de produção capitalista e de sua super-exploração do homem e da natureza. A causa principal das milhões de mortes pela pandemia em todo o planeta está na total ausência  de acesso e de assistência médica de qualidade à maioria dos trabalhadores em todos os países da Terra e à falta de políticas públicas eficazes de prevenção e de mitigação de contágios, sejam em países ricos ou pobres, no entanto, para estes últimos mais pobres, as consequências desta falta de assistência à saúde são muito mais graves e catastróficas.

Durante quase duas décadas de existência da UEG, observa-se que pouca coisa mudou desde as suas origens. As relações continuam ainda mais hierarquizadas, verticalizadas e autoritárias, onde professores, alunos e funcionários não participam ou sequer são plenamente ouvidos pela administração central para a tomada de decisões importantes. Entra governo e sai governo, continuam ainda as práticas clientelistas e patrimonialistas de seus gestores. Faltam investimentos e também maior democratização do ensino superior. E os estudantes da UEG, que já possuíam uma precária e insuficiente assistência estudantil antes mesmo da pandemia, sem moradia estudantil, sem salas de informática, bibliotecas defasadas e muitos campi sem internet, com o advento do sistema emergencial de aulas remotas por tecnologias virtuais durante a pandemia, se transformaram nas maiores vítimas deste vergonhoso processo de exclusão digital. O novo coronavírus, além de escancarar e desmascarar essa triste realidade de sucateamento e precarização do ensino que já existia na UEG desde a sua fundação, passa agora a potencializar as desigualdades e as mazelas existentes dentro da própria universidade, tornando a UEG mais sucateada e mais excludente do que no período anterior à pandemia.

Em 2020, com o surgimento da pandemia do vírus Sars-Cov-2, o governo do Estado de Goiás passa a ser o segundo ente da federação a decretar as regras de isolamento social da população e com a suspensão total das aulas presenciais ainda no mês de março, permitindo a oferta dos conteúdos e disciplinas no formato do chamado Ensino à Distância (EaD). A UEG foi a  única Instituição de Ensino Superior pública em Goiás a dar continuidade às aulas de forma remota durante os primeiros meses de isolamento social e a não paralisar totalmente as atividades de ensino, e com isso não oferecendo tempo hábil para adaptação, preparação e capacitação dos alunos e professores frente à nova realidade de ensino virtual no contexto de pandemia. A Portaria n. 560-2020 emitida pelo novo reitor interventor no dia 16 de março de 2020, suspendeu por apenas 15 dias todas as atividades de aulas presenciais na universidade (UEG, 2020). A partir de então, inicia-se, dentro de um curtíssimo intervalo de tempo, um grande conflito e debate na comunidade universitária da UEG sobre as formas de continuidade das atividades do primeiro semestre de 2020 e de como seriam construídas e realizadas as propostas didático-metodológicas emergenciais e sem aulas presenciais. A reitoria começa então a pressionar professores, alunos e funcionários a aderirem à modalidade de ensino à distância (EaD) como necessária ao contexto da pandemia. Porém, mais uma vez, alunos, professores e funcionários não são ouvidos ou consultados sobre as formas de continuidade das aulas na forma remota ou sobre os novos cronogramas das atividades de ensino, pesquisa e extensão. Também não foram ouvidos sobre quais seriam os pressupostos, as tecnologias viáveis e os princípios metodológicos para as atividades que poderiam ser mantidas e ministradas remotamente durante a pandemia.  E já no dia 25 de março a reitoria passa a implementar de forma unilateral e autoritária o chamado “Plano Emergencial de Ensino e Aprendizagem - PEEA” através da instrução normativa 80-2020, que impõe o ensino à distância como regra e modelo a ser seguido e adotado por toda a universidade (UEG, 2020b).

Houve manifestações contrárias à imposição pragmática e autoritária do EaD na universidade pela reitoria. Muitos professores, alunos e funcionários se manifestaram contrários às decisões unilaterais da reitoria. Alguns cursos paralisaram as atividades, porém, a maioria dos campi aderiram à nova proposta de implementação do EaD na universidade, mesmo não tendo as condições mínimas necessárias de infraestrutura adequada. O grande embate não era contra a necessidade de continuidade das aulas na forma não presencial, mas sim a maneira pela qual a reitoria e o governo impuseram de forma abrupta a escolha do EaD sem diálogo e também sem nenhuma contrapartida por parte do governo no que se referia ao acesso e financiamento de computadores e internet para alunos e também para os professores mais necessitados.

Na verdade, o que se assistiu a partir de então, foi uma total e nefasta exclusão digital experimentada por alunos e também por professores da universidade, na falta de acesso à internet e sem a oferta de nenhuma capacitação ou formação para se ambientarem a estas novas e complexas tecnologias e plataformas digitais. Estudantes da UEG relataram que não possuíam internet em suas residências, muitos foram e ainda estão sendo obrigados a assistirem as aulas através de celulares smartphones, e centenas de outros abandonaram os cursos ou trancaram as matrículas. Vários professores utilizam grupos em aplicativos de whatsapp para envio de conteúdos de aulas aos seus alunos. Além de não haver tempo para a adaptação e de capacitação para o novo formato de aulas mediadas por tecnologias virtuais, não houve a disponibilidade por parte da universidade do acesso aos equipamentos e tecnologias necessárias para o efetivo aprendizado e acompanhamento das atividades em EaD aos estudantes.

 

Analisando a partir da realidade dos cursos de História da UEG, constatamos que os 11 cursos oferecidos pela Universidade estão todos localizados em cidades do interior do estado. Embora muitas dessas cidades sejam consideradas polos urbanos nas regiões em que está inserida, a maioria dos alunos que os campus ou unidades recebem não residem nas cidades polos, mas em regiões circunvizinhas com acentuada características rurais ou mesmo em comunidades rurais, o que torna o acesso à internet ainda mais precário, sem falar do aporte econômico necessário, que nem todos os alunos dispõem, para o acesso a equipamentos e sinal de internet de qualidade.  (CANTANHEIDE, 2020, p.91)

 

Não se pode esquecer tão pouco que o contexto em que se discute a exclusão digital é o contexto de uma pandemia causada por um vírus altamente letal, que tem levado a morte milhares de pessoas no país e no mundo todo, e que é capaz de provocar abalos familiares e transtornos psíquicos e emocionais em alunos, professores e funcionários. Somando a toda essa exclusão que a implantação pragmática e irresponsável do Ensino à Distância na UEG tem provocado dentro da comunidade universitária, também podemos acrescentar a essa tragédia o desemprego e a queda de renda entre os familiares dos estudantes, funcionários e professores durante a atual pandemia, sendo capazes de provocar ainda mais transtornos, estresse  e dificuldades materiais e emocionais.

O que estamos assistindo atualmente na UEG, em meio à pandemia do novo coronavírus,  é um total aniquilamento dos propósitos e sentidos de uma universidade pública, com aumento exponencial da precarização e da exclusão digital de estudantes e de professores, que fazem aumentar ainda mais as injustiças sociais e os abismos já existentes no meio acadêmico. Existe uma obstinação dos gestores da universidade apenas na manutenção e funcionamento da instituição com a reprodução de conteúdos, disciplinas e de aulas, ainda que sem nenhuma qualidade ou adesão de alunos, no sentido apenas de garantir um falsa normalidade (“Novo Normal”) em um ano eleitoral no país, e utilizando mais uma vez a universidade como instrumento de barganha política e propaganda eleitoral.

Vemos assim que a UEG continua sendo como sempre foi no decorrer destas duas décadas de sua existência, uma instituição totalmente burocratizada, hierarquizada, verticalizada e anti-democrática, onde os sujeitos que a integram, professores, alunos e funcionários,  nunca são ouvidos pelos gestores, tendo suas vozes sempre silenciadas pela burocracia institucional. Os desmandos e os caprichos de políticos e gestores, a transformam numa instituição incapaz de realizar a sua verdadeira função na democratização e a universalização do saber, se prestando apenas a formar mão de obra barata para o mercado do subemprego e do desemprego e a servir de capital político aos governos de plantão. E a pandemia do novo coronavírus tem servido para escancarar todas essas tragédias e desigualdades dentro da própria universidade, além de aumentar exponencialmente todas essas injustiças, potencializa também a própria exclusão de estudantes e professores pobres dentro da universidade, desvirtuando e aniquilando todos os sentidos e os valores daquilo que deveria ser uma verdadeira universidade pública.

 

CONCLUSÃO

Vemos que a pandemia do novo coronavírus não somente tem sido capaz de escancarar as mazelas e injustiças já existentes na Universidade Estadual de Goiás, mas também tem potencializado de forma exponencial as dificuldades de acesso ao saber entre alunos e professores mais carentes pertencentes à instituição. O advento da pandemia e a completa ausência de políticas públicas de financiamento e de acesso às tecnologias virtuais estão a promover a maior exclusão de alunos e professores em toda história da UEG, seja na forma da exclusão digital, sem o fornecimento adequado e de qualidade de acesso à internet, seja também a exclusão promovida pela ausência de políticas de assistência estudantil de qualidade. A total falta de recursos e de investimentos na UEG, ao longo de toda a sua existência, vem somente a aprofundar ainda mais o abismo da exclusão e da injustiça social dentro da universidade nestes tempos nefastos e sombrios de pandemia.

BIBLIOGRAFIA

CANTANHEIDE, F. P. Educação Superior em Tempo de Pandemia: a experiência da UEG. In: ALVES, M.F.; REIS, L.C.R.R.; SILVA, F.L. (Orgs.). Educação em Risco nos Tempos de Pandemia: diálogos sobre política e práticas. Goiânia: Editora Espaço Acadêmico, 2020. p.85-103.

CARVALHO, R. R. S.; Universidade Estadual de Goiás: histórico, realidade e desafios. 2013. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2013.

GOIÁS. Decreto n. 9.633, de 13 de março de 2020. Dispõe sobre a decretação de situação de emergência na saúde pública do Estado de Goiás, em razão da disseminação do novo coronavírus (2019-nCov). Diário Oficial Estado de Goiás: Goiânia, GO, ano 183, nº 23.257, p. 1-2, 13 mar. 2020.

UEG. Portaria n.560/2020 de 16 março de 2020.

_____. Instrução Normativa nº 80/2020 da Pró-reitoria de Graduação de 25 de março de 2020.

Racismo, Trabalho e Pandemia no Brasil


 

(Escrito por Renato Coelho)


Em plena pandemia do novo coronavírus temos assistido a multiplicação de manifestações anti-racistas em vários países do mundo, e não é por menos, pois com o surgimento da pandemia houve também um aumento exponencial da violência contra os negros. A pandemia não somente tem escancarado a existência do racismo estrutural na sociedade capitalista, assim como também tem feito aumentar a exclusão e a morte de negros.

Temos como exemplos emblemáticos a morte brutal do trabalhador norte americano George Floyd na cidade de Minneapolis, assassinado por agentes da polícia local. E mais recente a morte do soldador João Alberto no interior de um hipermercado da cidade de Porto Alegre,  também morto covardemente por agentes de segurança. Ambas as mortes demonstram a existência de um racismo estrutural na sociedade, onde o negro é sempre tratado de forma discriminatória, desumana e com ações violentas, recebendo um tratamento diferenciado e desproporcional em relação aos brancos.

Atualmente tem-se constado um número gigantesco de contágios e de mortes por covid-19 no Brasil, sendo computados até o dia de hoje cerca de 16 milhões de contágios e mais de 430 mil mortos (www.saude.gov.br). Esses números são absurdamente altos, mesmo sabendo que as estatísticas oficiais são todas subnotificadas. Tais números na verdade evidenciam e demonstram um extermínio de classe no Brasil durante a pandemia do novo coronavírus, onde pobres, desempregados, ambulantes, negros, idosos e índios são as maiores vítimas da covid-19. Sabemos ainda que todas essas mortes se devem essencialmente à falta de assistência médico hospitalar às vítimas da covid-19 e à total ausência de políticas prevenção mastigação contra os novos contágios. Não somente no Brasil, mas em todo o mundo, sejam em países ricos ou pobres, o atendimento médico hospitalar se transformou apenas em negócio, onde a saúde humana sempre foi tratada apenas como mercadoria e vendida por um alto preço por empresas de planos de saúde, farmácias, indústrias de remédios, redes de hospitais e fabricantes de vacinas, ficando os pobres e trabalhadores totalmente excluídos do acesso ao atendimento de saúde (ver gráficos 01 e 02 abaixo IBGE PNAD 2020).

 


 Gráfico 01 – Busca por atendimento de saúde pela população com sintomas da covid-19 no Brasil (fonte: https://covid19.ibge.gov.br/pnad-covid/saude.php)


No gráfico 01 acima observamos que apenas 2 milhões de pessoas com sintomas de Covid-19 no Brasil buscaram atendimento médico-hospitalar. Em contrapartida, segundo o gráfico 02 abaixo, 6,3 milhões de pessoas com sintomas da Covid-19 não buscaram atendimento de saúde. As estatísticas comprovam que a ausência de atendimento de saúde às vítimas da pandemia no Brasil é uma realidade alarmante e causa influência direta no grande quantitativo de mortes no país causado pela pandemia do novo coronavírus.




Gráfico 02 – Providências tomadas por aqueles que não buscaram por atendimento de saúde e que apresentavam sintomas da covid-19 no Brasil (fonte: https://covid19.ibge.gov.br/pnad-covid/saude.php)


O sistema capitalista não possui nenhum compromisso com a qualidade ou acesso à saúde pelos trabalhadores em geral. E quando a saúde das pessoas se transforma apenas em mercadoria, o que se vislumbra no presente é a exclusão e o extermínio de classe entre os trabalhadores pobres em todo o mundo, seja em países ricos como os EUA ou em países pobres, como no caso do Brasil. Mesmo possuindo um sistema público e gratuito de saúde (Sistema Único de Saúde – SUS), que atende uma grande parte da população mais pobre e carente, que não possui condições de pagar um plano de saúde privado, a pandemia contabiliza milhares de vítimas entre a classe mais pobre. Tal sistema público brasileiro, o SUS, encontra-se atualmente sucateado, com precarização das condições de trabalho e ainda com baixa remuneração dos trabalhadores da saúde. Diante desta triste realidade, não podemos nunca dizer que a covid-19 é uma doença “democrática”, pois ela atinge de forma distinta, as diferentes classes sociais, porém, com impactos, consequências e índices de mortalidade bastante diferenciados (ver gráfico 03 abaixo). No gráfico abaixo do IBGE PNAD 2020 podemos analisar que a maior parte das pessoas contaminadas pelo novo coronavírus no Brasil possuem um rendimento familiar per capta inferior a dois (2) salários mínimos. Já a população com renda superior a quatro (4) ou mais salários mínimos per capta foi a que menos se contaminou pelo vírus Sars-Cov-2. Quando se observa e analisa os números da pandemia no Brasil, vê-se claramente que a pandemia é capaz de desmascarar mazelas e injustiças latentes no seio da sociedade brasileira, como as disparidades e abismos sociais, a violência de gênero e ainda o racismo estrutural.



Gráfico 03 – Distribuição dos casos positivos de covid-19 por faixa salarial. (fonte: https://covid19.ibge.gov.br/pnad-covid/saude.php)


Em agosto de 2020 o Brasil ultrapassou a marca de 100 mil mortes por covid-19 e com mais de 3 milhões de contágios, ficando atrás somente dos EUA em termos numéricos. Estes não são apenas números, a covid-19 é um agente social, e por trás desta complexa e macabra  matemática dos números na pandemia, existem nuances, significados e sentidos em que apenas a matemática não é capaz de explicar sozinha, pois exige um olhar mais acurado e interdisciplinar para uma situação tão caótica em que vive o Brasil neste período atual de início de uma grande e avassaladora terceira onda de contágios, onde a pandemia ainda encontra-se sem controle e em aceleração contínua.

Segundo a OMS o índice estimado de letalidade do novo coronavírus no mundo é de 0.6%, ou seja,  para cada grupo de 1.000 contaminados, 6 pessoas acabam indo a óbito. Este índice é considerado altíssimo, e demonstra que o vírus é altamente mortal. Para se ter uma ideia, o vírus da gripe A (H1N1) na pandemia de 2009 possuía um índice de letalidade igual a 0,01%. O índice de letalidade pode variar de região para região e também pode alterar em distintas fases da pandemia. O número de pessoas contaminadas pelo vírus Sars-Cov-2 no Brasil é muito grande, porém, o percentual de letalidade não é igual para todos os grupos de pessoas infectadas. Observou-se que o percentual de mortes entre pessoas negras internadas com a covid-19  é maior do que em brancos também contaminados. Constatou-se também que a mortalidade entre pacientes de hospitais públicos no Brasil que tratam da covid-19 é bem maior do que em hospitais privados.  A explicação para essas diferenças não se dá através da genética destes pacientes, mas sim através de suas origens de classe social.  

Pesquisas recentes divulgadas pelo NOIS (Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, 2020) da PUC do Rio de Janeiro (https://sites.google.com/view/nois-pucrio), constataram que mais da metade dos negros internados por Covid-19 em hospitais no Brasil morreram. Segundo estes estudos, foram analisados 29.933 casos de covid-19, deste total 8.963 eram negros e 54,78% deles morreram. Na mesma pesquisa dos 9.998 brancos internados 37,93% morreram com diagnóstico de covid-19. Analisando os números da pesquisa, pessoas negras entre 30 e 39 anos, tem 2,5 vezes mais chances de morrerem ao serem internadas por Covid-19 do que pessoas brancas da mesma idade (ver gráfico 04 abaixo). A explicação da origem destas disparidades numéricas se dá através do chamado racismo estrutural existente no Brasil que promove as diferenças sociais entre pessoas brancas e negras no país. Pesquisas realizadas nos EUA também apontam um índice maior de letalidade pela covid-19 entre negros daquele país.


Gráfico 04 – Percentual de óbitos ou recuperados por raça/cor 
(fonte: https://sites.google.com/view/nois-pucrio)


O racismo estrutural existente no Brasil é o responsável pelos tristes e nefastos números da pesquisa acima. Por mais de 500 anos os negros no Brasil sofreram e ainda sofrem discriminação e exclusão aos meios de acesso ao trabalho, saúde, lazer, estudo e moradia. A herança escravocrata, as imensas desigualdades de classe e a legitimação do racismo e da miséria pelo sistema capitalista, são os principais promotores da alta de letalidade por covid-19 entre os negros brasileiros. Obviamente que as pessoas negras no Brasil que possuem menor acesso às políticas públicas de saúde com qualidade, à moradia digna, ao saneamento básico, e que possuem menores salários e renda do que os brancos,  que tem maiores dificuldades de acesso à escola e ao ensino superior, que são também excluídas do lazer e de uma alimentação completa e de qualidade em comparação com os brancos, consequentemente terão maiores comorbidades como pressão alta, diabetes, sobrepeso e várias outras doenças que podem agravar o estado de saúde ao contrair o novo coronavírus, aumentando assim o chamado índice de letalidade em relação à covid-19.

Pretos e pardos no Brasil possuem o maior índice de letalidade da covid-19 em internações, e também segundo o IBGE, formam a maioria dos trabalhos de menor remuneração, o que evidencia mais uma vez a questão do racismo estrutural no Brasil e a sua relação com a pandemia, já que as pessoas mais expostas são aquelas que exercem trabalhos mais precarizados, como vendedores ambulantes, vigias, atendentes, balconistas, entregadores e etc., e estas são as que possuem maior facilidade de serem contaminadas pelo vírus e adquirirem a covid-19. Enquanto uma minoria de classe mais alta faz o chamado trabalho remoto de suas casas, a maioria formada pelos mais pobres é obrigada a trabalhar no “front” da pandemia, usando diariamente o transporte coletivo, trabalhando nas ruas, supermercados, nas indústrias e no comércio em geral, possuindo as funções ou cargos de entregadores de app, vigias de supermercados, motoristas de ônibus, funcionários de limpeza, balconistas, operadores de telemarketing, operários, garis, vendedores ambulantes e etc.


Tabela 01 - Relação de mortalidade por covid-19 e renda familiar na cidade de São Paulo. (OBSERVATÓRIO COVID-19 BR, 2021)

Na tabela acima (OBSERVATÓRIO COVID-19 BR, 2021) vemos a relação de mortalidade por covid-19 segundo a distribuição de renda no município de São Paulo. Observa -se nesta tabela que  na medida em que se aumenta a pobreza (menor o salário) o risco de óbito por covid-19 aumenta, chegando a ser duas vezes maior entre a população mais pobre.


Tabela 02 - Relação de mortalidade por covid-19 e número de moradores por domicílio na cidade de São Paulo.(OBSERVATÓRIO COVID-19 BR, 2021)


Na tabela 02 acima (OBSERVATÓRIO COVID-19 BR, 2021) tem-se a relação do número de moradores por domicílio  (densidade domiciliar) e a mortalidade por covid-19. Notamos na tabela que a medida em que se aumenta a densidade domiciliar a mortalidade também aumenta de forma significativa, chegando a ser a mortalidade 62% maior em domicílios com mais moradores residentes em comparação com domicílios com média inferior a 2,7 moradores por casa (ver tabela 02).

A pandemia escancara as injustiças sociais no Brasil, colocando em evidência o racismo estrutural brasileiro e as suas consequências. O Brasil é  um dos países mais racistas do mundo, o vírus Sars-Cov-2 não mata de forma igual e democrática, o vírus carrega a marca das injustiças e misérias sociais como o racismo, e acaba matando mais os trabalhadores pobres e também os trabalhadores pretos, que são as principais vítimas da exclusão social e também agora as principais vítimas da pandemia.

 

                                        Bibliografia 

                                  

 OBSERVATÓRIO COVID-19 BR.  O impacto da desigualdade na mortalidade por covid-19. Em: <https://covid19br.github.io/analises.html?aba=aba6> . Visualizado em: 17/05/2021.



Educação Física e o Mundo do Trabalho na Pandemia



Foto 01- Centro de Excelência dos Esportes - ESEFFEGO - Goiânia


 (Escrito por Renato Coelho)

A destruição acelerada da natureza, a intensificação da precarização do trabalho e da vida humana pelo sistema capitalista, fizeram surgir a pandemia do vírus Sars-Cov-2 e seus efeitos nefastos por todas as nações da Terra.
A mercantilização dos serviços básicos de saúde, a total ausência de assistência médica aos trabalhadores, aliado ao total descompromisso e desinteresse do Estado pela saúde e pela vida humana, estão a promover o genocídio de milhões de trabalhadores e trabalhadoras pobres em todo o mundo, onde o lucro do capital acaba sempre prevalecendo mais do que as vidas humanas.
A pandemia do novo coronavírus descortina as desigualdades, as misérias e a super-exploração dos trabalhadores em todo o mundo, além de também potencializar as injustiças e as diferenças que separam os mais ricos dos mais pobres. Enquanto milhões de trabalhadores perdem o emprego, a renda e a própria vida para a pandemia, as grandes empresas e multinacionais faturaram cifras astronômicas com lucros recordes durante os períodos de quarentena e de isolamento social verificados durante o primeiro semestre de 2020.
As flexibilizações das leis trabalhistas, as reduções salariais, o desemprego, o aumento do chamado "homework" e a generalização do  Ensino à Distância (EaD), estão potencializando a precarização e a super exploração do trabalho durante a pandemia do Sars-Cov-2, e em consequência o aumento das desigualdades sociais, da miséria e da precarização da vida humana.
Neste espaço virtual iremos analisar a dinâmica e as contradições do mundo do trabalho no sistema capitalista em meio à pandemia do novo coronavírus. A pressão de governos, da mídia e de empresários para a volta à normalidade e a falácia maquiavélica do chamado "Novo Normal" traduzem os valores e os princípios que norteiam e regem a atual sociedade capitalista, desvalorizando a vida humana e priorizando tão somente a produção de mercadorias e a acumulação do capital.
O vírus Sars-Cov-2 não é um vírus chinês e tão pouco possui alguma nacionalidade, é na verdade um vírus pertencente à natureza e assim como todos os demais vírus, são fundamentais para o equilíbrio dos ecossistemas e da vida na Terra. Os efeitos nefastos da pandemia são consequência do modo de produção capitalista e de sua super-exploração do homem e da natureza. A causa principal das milhões de mortes em todo o planeta durante a pandemia  não é em função apenas da nova doença denominada de covid-19, mas diz respeito à total ausência  de assistência médica de qualidade à maioria dos trabalhadores em todos os países da Terra e à falta de políticas de prevenção e de mitigação para o novo coronavírus, sejam em países ricos ou pobres, sendo que, para estes últimos, as consequências da falta de assistência à saúde são mais danosas e catastróficas.
Nosso propósito será o de relacionar educação, esporte, educação física e trabalho numa sociedade capitalista, marcada por desigualdades sociais, exploração, precarização em tempos de pandemia do vírus Sars-Cov-2.

 

A Educação Física na Montanha Russa da Covid-19

 

Gráfico 01 - Média Móvel de Mortos em Goiás - Covid-19


(Escrito por Renato Coelho)

Existe uma antiga lenda sobre a origem do jogo de xadrez, chamada de “a lenda de Sissa”. Reza a lenda que um sábio chamado Sissa, após criar o jogo de xadrez e ensinar o rei hindu a jogar este jogo de tabuleiro, fez um desafio ao rei como resposta à proposta que o mesmo lhe fizera, em lhe dar qualquer coisa que pedisse. Então Sissa lhe pediu que colocasse um pequeno grão de trigo no primeiro quadrado do tabuleiro, e em seguida o dobro de sementes de trigo no segundo quadrado, e após isso, o dobro de sementes de trigo no terceiro, e novamente no quarto quadrado, o dobro de sementes colocado antes, e assim sucessivamente até que se chegasse ao 64º e último quadrado do tabuleiro de xadrez. O rei achou o pedido muito singelo e zombou de Sissa, solicitando que os seus servos fizessem os cálculos e então entregassem as sementes à Sissa. Entretanto, após os servos reais consultarem os matemáticos da corte, ficaram totalmente espantados e perplexos, e foram correndo procurar o rei. Ao chegarem diante do rei, mostraram os números à sua alteza e explicaram que nem todo o ouro e nem todos os tesouros reais seriam suficientes para pagar o pedido de Sissa.

Na verdade, o pedido de Sissa obedecia a uma função exponencial, também conhecida como progressão geométrica, onde a quantidade de trigo sempre dobra de um quadrado para o outro. No primeiro quadrado: uma semente de trigo, no 2º quadrado: 2 sementes, no 3º deveria ser colocado 4 sementes, no 4º mais 8 sementes, no 5º a quantidade de 16 sementes e assim sucessivamente até o 64º quadrado final do tabuleiro. É uma progressão geométrica de ordem 2 (R=2), ou seja, ela dobra a cada nova contagem. E utilizando a fórmula matemática para uma progressão geométrica (An = ao x Rn-1) chegamos à quantidade de sementes de trigo suficiente para preencher todo o tabuleiro de xadrez e pagar Sissa: 18.446.744.073.709.551.615 sementes de trigo. Ou seja, a quantia de sementes era impagável e impossível de ser cultivada, pois a superfície inteira do planeta Terra não seria suficiente para o plantio, e ainda, nem se quer haveria local suficiente no planeta para armazenar e guardar toda a quantidade final de sementes.

Vemos através da lenda de Sissa o poder de crescimento das funções exponenciais, mas não precisamos ser exímios matemáticos ou doutores em epidemiologia para compreender o crescimento vertiginoso de contágios e de óbitos provocados pela covid-19 em Goiás, pois somente a matemática ou a biologia não são suficientes para explicarem estes tristes números. As transmissões do novo coronavirus seguem a matemática de Sissa, ou seja, as funções exponencias e foi por isso que em apenas três meses a covid-19 atingiu a todos os países do planeta Terra. A matemática de crescimento da doença respiratória Covid-19 segue a mesma lógica dos grãos de trigo no tabuleiro de xadrez, porém, a velocidade das transmissões depende de várias variáveis, como veremos a seguir, podendo ser assim aceleradas ou freadas.

Segundo os dados oficiais, a transmissão comunitária do vírus Sars-Cov-2 em Goiás se iniciou em março de 2020 e a primeira morte pela covid-19 se deu no dia 28 de março na região do entorno de Brasília. No entanto, ainda no dia 9 de fevereiro, o Estado de Goiás teve uma importante experiência com relação à pandemia, quando a Base Aérea de Anápolis serviu de local de quarentena para 34 brasileiros que foram repatriados de Wuhan na China, onde permaneceram por 14 dias em Anápolis e fornecendo uma aprendizagem relevante sobre o comportamento e as precauções com relação ao vírus transmissor da covid-19. Além desta oportunidade ímpar de estudar e conhecer melhor o vírus com a primeira quarentena de covid-19 no Brasil realizada na cidade de Anápolis, o Estado de Goiás, assim como todos os demais Estados da região Centro Oeste e Sul do país, foram as últimas regiões do Brasil a serem impactadas fortemente pela pandemia do novo coronavirus, o que forneceu mais tempo para uma melhor preparação e implementação de políticas públicas de mitigação de contágios e para tratamento de doentes, porém, não foi nada disso o que se viu de fato. E em virtude das questões geopolíticas do Estado de Goiás, que fica numa região mais central, interiorana e menos populosa do país, com aeroportos de baixo fluxo aéreo, houve realmente um certo retardo na chegada da crise provocada pela pandemia em relação ao restante do país (regiões sudeste, norte e nordeste). Todos esses elementos juntos, teoricamente falando, deveriam ser fatores positivos no combate e mitigação de contágios do novo coronavirus em Goiás, pois permitiu maior tempo hábil para os gestores e políticos planejarem melhor as ações no combate à pandemia e consequentemente para a  diminuição de vítimas fatais. Entretanto, nada disso aconteceu. Goiás chega hoje a um triste e absurdo número de mortes, cujo quantitativo atual já ultrapassa o valor de 5.444 óbitos de pessoas vítimas da covid-19, e alcançando também uma taxa de letalidade de 2,26%. A taxa de letalidade de 2,26% é considerada altíssima, significa que a cada 100 pessoas contaminadas, mais de duas delas vem a óbito. Segundo o jornal “O Popular” de 28 de setembro de 2020, somente até o mês de agosto, 136 pessoas morreram na fila por UTI, por falta de leitos em Goiás. São números assustadores e demonstram mais uma vez que a letalidade poderia ser muito mais baixa, caso as pessoas tivessem de fato atendimento médico-hospitalar adequado e ainda houvesse existido uma verdadeira política de mitigação de contágios em Goiás com testagem em massa, rastreio de contatos e isolamento das vítimas.

No gráfico 01 com a curva exponencial acima, podemos acompanhar a cronologia das transmissões da Covid-19 e o número diário de óbitos em Goiás. Vemos que as transmissões comunitárias foram registradas oficialmente após o carnaval na primeira quinzena de março e a primeira morte registrada foi em 26 de março, provando que o vírus já estava circulando em Goiás ainda em março ou até mesmo antes desta data. Já no dia 13 de março o governo de Goiás divulga o Decreto N. 9633 que impõe a situação de Emergência em Saúde Pública, promovendo a quarentena em Goiás com proibição de funcionamento de várias atividades econômicas no Estado, inclusive bares, cinemas, restaurantes, academias, escolas e universidades. O isolamento social dura cerca de duas semanas, porém sem a realização de testagem em massa da população e sem o rastreamento dos contatos. Torna-se evidente que não se pode controlar a pandemia somente com quarentena, isolamento social ou lockdown, em paralelo e de forma contínua ao isolamento social, é também necessário a realização da testagem em massa com rastreio de contatos e atendimento hospitalar aos infectados. Porém, apesar do isolamento ter sido realizado no momento certo, no início da transmissão comunitária, não houve testagem em massa para mitigação dos contágios e a consequência todos nós já conhecemos, houve apenas o retardamento do pico de transmissões, onde a crise de contágios foi apenas postergada por mais algumas semanas, “empurrando” o pico de contágios para a segunda semana de agosto, com colapso na rede hospitalar e 100% de ocupação de UTI’s nesse período. E ainda hoje, no final de outubro de 2020, não existe em Goiás uma política pública robusta e eficaz de testagem em massa, ficando os números de testes muito abaixo do recomendado, daí o verdadeiro motivo do número altíssimo de subnotificações, e o vírus ainda permanecer fora de controle em Goiás e também no Brasil.

Ainda conforme o Gráfico 01, o governo de Goiás, por pressão dos setores empresariais e financeiros inicia uma agenda de flexibilizações ainda no mês de abril com funcionamento de feiras livres e até de igrejas. Naquele momento já eram computados cerca de 40 óbitos em Goiás (ver Gráfico 01). Observamos que as flexibilizações, conforme o gráfico acima demonstra, iniciam no momento de aceleração dos contágios e de mortes em Goiás. Quando o número de contágios aumenta, o aumento do número de óbitos sempre vem à reboque. Ou seja, o governo promove isolamento social obrigatório somente no início, quando ocorrem as transmissões comunitárias e passa contraditoriamente a flexibilizar continuamente a abertura da economia, quando a curva está no seu grau de maior ascendência e indo rumo ao pico de contágios. Tudo foi realizado de forma errônea e irresponsável pelos gestores que apenas atenderam ao lobby e a pressão de empresários e políticos, que em sintonia com o governo Federal, colocam sempre o lucro acima da vida humana. O correto era a realização maciça de testagem genética (RT-PCR) e a manutenção do isolamento social com apoio financeiro  irrestrito aos trabalhadores e também aos pequenos e médios empresários, a fim de se ter evitado a tragédia de 5.444 mortos em Goiás até o dia de hoje (números subnotificados). Essas recomendações não são algo novo, foram adotadas por países que atualmente conseguiram controlar a pandemia, como o Uruguai, a Coréia do Sul e outros.

Já na primeira quinzena de julho, quando a curva toma a chamada forma de “foguete”, apresentando uma inclinação ascendente quase vertical, o governo de Goiás e a prefeitura de Goiânia autorizam a abertura de bares, restaurantes, academias de ginástica, escolas de natação o e também o comércio da região da rua 44 na capital. Nesse momento já eram computados 740 mortes pela covid-19 no Estado de Goiás. Essa abertura se deu na fase mais crítica da pandemia em Goiás, quando na verdade, seguindo os protocolos científicos, deveria ser endurecida as regras de isolamento social e não a sua flexibilização tal qual aconteceu. O que assistimos em julho foram igrejas funcionando, alunos em academias, bares e restaurantes abertos e aulas de natação durante o pico da pandemia em Goiás. O pico é a parte da curva onde ocorre o ponto máximo de mortes diárias e de contágios. Neste ponto ocorre a inflexão da curva, onde em seguida, ela passa a decrescer ou a se manter num platô. E o platô é quando a curva se mantém numa média constante de contágios ou de óbitos. Segundo o Gráfico 01, o pico ocorre justamente na última semana de agosto, período no qual bares, restaurantes, escolas de natação e as academias de ginástica já permaneciam abertas desde a semana anterior ao pico. O que se assistiu depois foi uma aceleração de contágios e de mortes com surtos em várias regiões e a continuidade do descontrole total da pandemia em Goiás. Ainda observando o Gráfico 01, nota-se também que após o pico alcançado com média maior do que 60 mortes diárias, se estabelece um platô com média móvel de mortes altíssima e que perdurou até a segunda semana de outubro e somente após essa data a curva começa a desacelerar e sair do alto platô. O platô iniciou após o pico, ou seja, na última semana de agosto e se estendeu até a segunda semana de outubro, durando cerca de dois (2) meses, provocando um total de aproximadamente  2.441 mortos (5.401 – 2.960) somente no período de dois meses de manutenção do platô.

Devemos ressaltar ainda, que após o decreto de quarentena assinado em março (Decreto n. 9633), não houve nenhuma política pública eficaz e robusta no sentido de realizar a mitigação dos contágios pelo vírus Sars-Cov-2 em Goiás. As únicas variáveis que guiavam os gestores públicos eram o índice de ocupação de UTI’s e também o número de mortos informados pelos cartórios. Sendo que essa última variável, o número diário de mortos possui uma margem de erro próxima de 40%, que prova também ser subnotificada, assim como o número de contágios.Os dados oficiais na realidade mostram a pandemia no passado e não em tempo real, devido à subnotificação de casos e de mortes, os gráficos e os números que observamos hoje, podem ser descrições e imagens da pandemia há 30 dias atrás ou mais.

Consequentemente, o que assistimos após essa quarentena desorganizada e sem nenhum planejamento foi a própria natureza guiando a pandemia no Estado de Goiás. A natureza possui mecanismos para criação de pandemias como sistema de auto-proteção e para a preservação de espécies ameaçadas, mas a natureza também possui mecanismos inteligentes para por fim às pandemias criadas pelo homem ou por ela própria. O chamado clusters de mortos ocorre quando o vírus atinge um grau máximo de contágios, contaminando um percentual grande de uma população, e então, devido a esse contágio maciço, o próprio vírus acaba ficando sem muitas opções para novos contágios, pois grande parte ou quase toda a população já foi contaminada ou foi a óbito. Neste momento de altos índices de contaminações, surgem os chamados “clusters”, que são na verdade grandes barreiras ou “paredes” formadas somente por indivíduos contaminados ou de mortos, que por si só, acabam freando a velocidade de propagação do vírus e amortecendo a curva da pandemia, tal qual observamos no Gráfico 01 atualmente no mês de outubro de 2020. A partir de março não foram realizadas políticas robustas e eficazes de controle da pandemia, vemos a partir de então, a um crescimento acelerado de contágios, com o pico em agosto e em seguida uma desaceleração em outubro. Neste período de platô a natureza começava a criar o seu “clusters” de pessoas contaminadas e de mortos, esse processo durou cerca de dois meses, até o momento em que os números alcançaram níveis tão absurdamente elevados de mortos e de contaminados, que o vírus “joga a toalha”, não tendo mais muitas opções para novas contaminações, e passa a ter uma velocidade de contágio menor e menos acelerada. Porém, a opção da escolha deliberada e irracional pelo agir da própria natureza na pandemia, é considerada eticamente errada, desumana e também imoral, pois permite que o grande número de mortos e de contaminados se torne uma barreira natural a fim de frear e deter a pandemia. Porém, é exatamente isso o que estamos assistindo em Goiás e no Brasil como um todo, onde nenhum estado da federação conseguiu alcançar o tão almejado “achatamento da curva” pandêmica. Ainda temos que ressaltar o papel importante das mutações genéticas do vírus, e as constantes reinfecções, que torna impossível atingir a chamada imunidade de grupo ou de rebanho, que só ocorre com a vacinação em massa da população e não através do simples contágio.

 A segunda onda de propagação do vírus Sars-Cov-2 já é uma realidade atual na Europa e nos EUA, provavelmente o Brasil também deverá enfrentar em breve uma segunda onda, já que não temos previsões sobre a realização de imunização por vacinas, que ainda estão em fase de testes. Pelo que tudo indica, os mesmos erros praticados na primeira onda se repetirão novamente. Ondas que refletem a construção de um modelo de mundo insano, onde o capital insaciável sempre prevalece sobre a natureza e também sobre a vida humana.