quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Os Velhos Problemas da Educação Física e o Novo Coronavírus




Foto 01 - Centro de Excelência dos Esportes - ESEFFEGO (Goiânia Goiás)


(Escrito por Renato Coelho)

Neste atual momento de Pandemia, com a descoberta de uma nova e mais contagiosa variante (Ômicron) faz-se necessário e urgente a problematização sobre as práticas em Educação Física, a fim de se tentar   vislumbrar novos caminhos e alternativas para o ensino e aprendizagem dos elementos importantes e fundamentais da cultura corporal dentro de um contexto de precarização do trabalho e das contradições do chamado Ensino à Distância (EaD). Em um panorama de  descontrole do vírus Sars-Cov-2 e suas inúmeras variantes, impõe-se novos hábitos para a humanidade como a vida em confinamento, lockdown, quarentenas, distanciamento social, uso contínuo de máscaras, testagens e etc. , escancarando e potencializando também o crescimento exponencial da miséria, da violência contra mulheres, do racismo, da exclusão digital, da fome e do desemprego.

Mas para entendermos melhor o atual momento da Educação Física e da pandemia, é necessário sobretudo entendermos e resgatarmos um pouco sobre o percurso histórico da Educação Física desde o seu surgimento na Europa do século XIX, passando pelo novo modelo de reestruturação produtiva, o chamado toyotismo, iniciado nas últimas décadas do século XX e chegando ao atual século XXI, século este que passa a ser  inaugurado pela chamada pandemia do novo coronavirus.

A Educação Física, desde as  suas origens durante o século XIX na Europa, contribuiu para moldar o corpo e a vontade do trabalhador dentro dos preceitos da eugenia e do higienismo. Desde seu surgimento na Europa do século XIX até meados dos século XX, a Educação física era considerada como importante componente curricular das escolas, pois servia como instrumento imprescindível para formação de corpos sadios, úteis, fortes, disciplinados e obedientes, características estas importantíssimas para a reprodução da lógica capitalista no ambiente fabril. Porém, após as mudanças no mundo do trabalho, com a introdução da microeletrônica, da robótica, das tecnologias virtuais, de computadores no sistema de produção, se produziu também a exigência de um novo tipo de trabalhador polivalente, empreendedor e flexível, dentro de uma nova planta fabril horizontal, pautada na qualidade, no desempenho e na captura da subjetividade do próprio trabalhador. Sendo assim, impõe-se uma nova educação do corpo. A educação física então passa a ser secundarizada como componente curricular, dando lugar às disciplinas relacionadas à informática, às linguagens e às matemáticas. A Educação Física vai sendo extinta da escola, assim como a filosofia e as artes, seja na forma de diminuição contínua de sua carga horária ao longo dos anos, seja também na forma mais drástica como a implantação de reformas ou de Políticas Públicas (Lei nº 13.415/2017) por parte do governo federal.

 

O Movimento Ginástico Europeu e o nascimento da Educação Física

 

A Educação Física que surgiu na Europa durante o século XIX, a partir do chamado Movimento Ginástico Europeu era alicerçada sobre os paradigmas eugênicos e higienistas e com a intenção de formar, disciplinar e controlar o corpo dos trabalhadores. Ela se torna o principal instrumento para a formação de corpos fortes, obedientes, disciplinados, úteis e sadios para as fábricas em plena expansão. A falsa promessa da chamada promoção da saúde através dos exercícios ginásticos era realizada sem, no entanto, modificar as condições sociais e sanitárias dos emergentes centros urbanos. A chamada ginástica se torna neste período disciplina obrigatória e também o componente curricular mais importante nas escolas, trazendo para si a  responsabilidade de se transformar no “remédio e na cura” para todas as mazelas sociais. (SOARES, 1997)

A formação de um corpo servil, forte e eficiente se fazia essencial e imprescindível para a própria produção e reprodução do capital urbano-industrial em plena expansão na Europa do século XIX. A ginástica moderna, que posteriormente passará a ser denominada de Educação Física passa então a cumprir e efetivar o seu importante papel como instrumento de controle e adestramento do corpo do trabalhador. Não somente preparar o corpo para o trabalho, mas também o treinamento para a guerra e ainda a formação de um padrão de corpo nacional pautado nos paradigmas eugênicos, na preparação de um “tipo” de corpo de correspondesse à  “beleza” da nação e à “força” do fascismo na  representação do Estado Nacional. (SOARES, 1997)

 

Para se legitimar e ser aceita como componente curricular dentro da escola, a ginástica se apropria dos paradigmas e pressupostos das ciências naturais. As leis da mecânica, da biologia e da fisiologia passam a reger as aulas de ginástica. O corpo cartesiano é então todo “dissecado” e “esmiuçado” pelas ciências positivas e passa a ser compreendido como objeto a ser estudado, medido e analisado sob a luz do saber sistematizado da ciência moderna. Um corpo matemático, econômico, utilitário, com movimentos precisos e controlados é produzido pela ginástica do século XIX, para posteriormente ser totalmente aniquilado, mutilado e subsumido no chão das fábricas europeias.

Ao mesmo tempo em que a física e a fisiologia são incorporadas às aulas de ginástica, os movimentos e a artes circenses também passam a ser apropriados aos conteúdos das aulas, porém de forma diferente, sendo ressignificados e reelaborados com novos sentidos relacionados à racionalização e à mecanização do movimentar humano.

As atividades circenses eram carregadas do lúdico, do improviso, da espontaneidade e do descontrole. Corpos de malabaristas, palhaços, funâmbulos eram considerados subversivos à nova moral da burguesia urbano industrial. O circo com sua característica nômade, representava  o avesso da vigilância, controle e rigidez das fábricas. Corpos livres, criativos e engraçados geravam contraditoriamente espanto, diversão, medo, lágrimas, risos e pânico ao público nas ruas e praças das cidades. Em contrapartida, o capital continuava cada vez mais sedento por corpos subservientes e disciplinados, ao ponto de classificar o circo como atividade marginal, subversiva e ilegal.



             Foto 02 - Aula de Educação Física: ginástica solar (sueca) no Colégio D. Pedro II na cidade do Rio de Janeiro


A ginástica já incorporada à lógica da produção capitalista e com a importante função de formar e amoldar o corpo do trabalhador à desumana rotina fabril, passa então a incorporar os variados movimentos do circo, porém dando-lhe novos sentidos e significados. O “salto mortal” dos trapezistas passa a ser analisado e explicado sob o olhar da anatomia e da física. A famosa “parada de dois” dos palhaços do circo passa a ser interpretada pela mecânica newtoniana. O equilibrista agora é estudado  a partir  do posicionamento exato do seu centro de massa. Os corpos “bizarros” das mulheres barbadas, dos anões e siamesas são explicados pela biologia e pela genética mendeliana.

Vê-se assim a o surgimento da ginástica ou da Educação Física Moderna em um contexto de preparação do corpo do trabalhador para a produção fabril capitalista durante o século XIX. Era fundamental neste período efervescente do capital a máxima exploração do trabalhador  na extração do mais valor. No entanto, era fundamental também adestrar, controlar e disciplinar este corpo do trabalhador para esta nova fase de exploração do sistema capitalista de produção. Aqui entra em cena a ginástica com o importante papel de sistematizar e racionalizar o uso deste corpo nas fábricas. Moldar e adestrar o corpo para em seguida aniquilá-lo completamente para a produção e manutenção do capital.

Durante o século XIX e até meados do século XX,  a Educação Física Moderna, anteriormente denominada de ginástica, cumpre efetivamente o seu importante papel como instrumento de controle e de disciplina sobre o corpo do trabalhador. Ao se apropriar dos métodos das ciências positivas, a Educação Física se legitima dentro e fora das escolas. A racionalidade dos movimentos, a exatidão dos gestos, as performances precisas, a ergonomia postural e a economia de energia na realização dos movimentos, garantem à Educação Física posição de destaque frente às demais disciplinas do currículo escolar.

A nova reestruturação capitalista (Toyotismo)  e a desestruturação da Educação Física

Já durante o século XX e o pleno desenvolvimento da chamada reestruturação fordista-taylorista, o corpo é ainda capturado e reconfigurado segundo as imposições da produção linear, mecanizada e repetitiva das fábricas e de suas potentes máquinas. Mais uma vez a Educação Física continua com seu importante papel em robotizar braços e pernas dos trabalhadores. A promoção dos corpos fragmentados e dilacerados a se posicionarem servilmente em frente às infinitas esteiras de produção.  A partir deste mesmo século, a Educação Física escolar experimenta um forte processo de esportivização, onde o conteúdo esporte passa a ter grande hegemonia sobre os demais conteúdos da cultura corporal. Entretanto, o esporte também não deixa de cumprir a importante tarefa de promoção do corpo do trabalhador para o trabalho, reproduzindo também nas aulas o discurso de disciplina, saúde e utilidade.

Se torna fundamental a cooptação do trabalhador especializado  nas fábricas, a fim de conformar seu corpo e sua mente a um cotidiano sem sentido, sem prazer e sem descanso. O trabalhador se transforma em “apêndice das máquinas”, se vê obrigado a vender o seu próprio corpo em troca de um mísero salário, capaz de garantir apenas a sua sobrevivência para continuar a trabalhar o dia seguinte. Nos primeiros anos da escola, a Educação Física já se torna a responsável em inculcar no corpo infantil os fundamentos e as bases de um movimento racionalizado, eficiente, rápido e útil ao novo mundo do trabalho composto por máquinas, hierarquias, cronômetros e esteiras. Conteúdos alicerçados em paradigmas higienistas e eugênicos habilitam a educação física para a formação de corpos disciplinados, servis e obedientes, ainda sob a justificativa de proporcionar uma legítima “saúde” aos seus praticantes, e ao mesmo tempo negando as péssimas condições de vida e de miséria da maioria da população brasileira.

As chamadas “crises” ajudam a fortalecer ainda mais o sistema de exploração e que fazem parte, por sua vez, da própria natureza do capitalismo. As reestruturações econômicas e educacionais são também  impostas à sociedade  durante estes períodos de “crises” justamente para manutenção e fortalecimento do próprio capital. Ao final, quem realmente paga a “crise” é sempre o próprio trabalhador com a ampliação das políticas de austeridades fiscais que resultam sempre em cortes de direitos, diminuição de salários e no aumento do desemprego.

Porém, a partir das últimas décadas do século XX, o sistema capitalista entra em uma nova e forte crise provocada pela disparada dos preços do barril de petróleo em todo o mundo, com a estagnação da economia de todos os países capitalistas (“Crise do Petróleo”). Esta crise obriga a uma nova reconfiguração dos processos de produção, ou seja, se inaugura uma nova reestruturação a fim de evitar as quedas dos lucros das empresas e ainda garantir e perpetuar a própria lógica de reprodução capitalista, lançando sobre os ombros dos trabalhadores todos os prejuízos e ônus da crise. A reestruturação capitalista em vigor neste período altera radicalmente a planta das fábricas  e a própria organização e execução do trabalho humano.


                        Foto 03 - Aula de Educação Física em escola pública de Rio Verde Goiás na década de 1940.


O advento de novas e avançadas tecnologias na produção fabril como os robôs, computadores e a internet, e também a nova reconfiguração da arquitetura da produção, não  mais seguindo necessariamente a linearidade das esteiras e nem tão pouco a ultra especialização fordista, mas adotando o desenho em forma de círculos (ciclos de produção) e o trabalho polivalente, obriga assim a formação de um novo tipo de trabalhador capaz de se adaptar à nova realidade da chamada produção em Gestão de Qualidade Total ou Toyotista.

Dentro desta nova realidade produzida pela reconfiguração toyotista, este novo trabalhador passa a assumir novas características adequadas à reestruturação imposta pelas mudanças na configuração e morfologia fabril. A polivalência do trabalhador passa a ser uma das novas exigências do trabalho flexível, alterando drasticamente o modelo fordista de trabalhador ultra-especializado. A chamada polivalência do trabalhador implica na apropriação de novas competências, que são saberes relacionados à produtividade, à competitividade e à qualidade da produção de mercadorias, com o objetivo primordial de manter a hegemonia do capital na produção. Um trabalhador polivalente é aquele capaz de operar de forma simultânea várias máquinas e ainda acessar várias tecnologias ao mesmo tempo, sendo ainda capaz de renovar continuamente seus conhecimentos em prol da valorização do capital.

Estas novas exigências também chamadas de “competências” se caracterizam pelo conhecimento de novas linguagens, informática, protocolos de gestão, matemática e microeletrônica. A imposição destas novas competências ao trabalhador se relaciona também com o processo de globalização dos mercados mundiais e particularmente também com a recente revolução tecnológica representada pela internet e a nanotecnologia. As novas competências adquiridas pelo trabalhador flexível toyotista não se referem à apropriação de um conhecimento profundo capaz de levá-lo a autonomia, mas diz respeito basicamente a um saber superficial e pragmático, capaz de qualificar minimamente e momentaneamente o trabalhador, adequando-o aos modismos e ao pragmatismo do mercado.

Uma das principais características da ideologia toyotista é a captura da subjetividade do trabalhador, estando corpo e mente integrados e subsumidos à produção capitalista. O consentimento operário e a cooptação do trabalhador formam a chave para o controle e a super-exploração da classe trabalhadora e ainda para a otimização da produção. O pensamento, a postura e toda subjetividade humana são de forma coercitiva e violenta canalizadas para cooperarem com a reprodução do capital, auxiliando e colaborando para o melhor funcionamento e na maior lucratividade da fábrica ou empresa. A alma, o consciente, o inconsciente, a imaginação e o próprio tempo de sono do trabalhador são obrigados a se sujeitarem e a participarem integralmente da produção do mais valor.

A cada reestruturação produtiva do capital exige-se a formação de um novo tipo de trabalhador, logo a educação em geral, que no sistema capitalista de produção tem a função de formação de mão de obra barata que atenda as exigências do mercado, irá de pronto sofrer também a sua própria reestruturação através de reformas curriculares, construção de parâmetros curriculares nacionais, aligeiramento dos conteúdos, fragmentação das disciplinas e também na criação e extinção de cursos. A reestruturação da educação sempre vai a reboque da reestruturação do mercado. Enquanto as fábricas e as empresas passam a exigir um novo tipo de trabalhador polivalente, flexível, altamente precarizado, eficiente e submisso, a educação institucional em contrapartida, cumprirá o seu fiel papel de formar e equipar o trabalhador com estas novas demandas e características, mesmo sendo para um mercado altamente precarizado e caracterizado pelo desemprego estrutural. As contínuas reformas curriculares permitem a efetivação das adequações necessárias para formação  e capacitação do trabalhador, de forma a impor-lhe a entrada no mercado flexível, instável e precarizado. Estas constantes e contínuas mudanças curriculares, que vão desde a educação básica aos cursos universitários de graduação e de pós-graduação, evidenciam a estreita correlação entre educação e mercado dentro da sociedade capitalista, ratificando a sua “nobre” função em formar mão de obra barata para o trabalho precário, o subemprego e para o desemprego estrutural.

Percebe-se assim, que diante das novas investidas do capital globalizado sobre a educação, ocorre uma total reconfiguração de disciplinas e de conteúdos,  seja dentro da escola ou nas próprias universidades. Diante das  novas demandas e exigências do mercado vão sendo criados novos saberes e disciplinas dentro das matrizes curriculares que convergem basicamente para a formação das chamadas novas competências do trabalhador flexível, como a inclusão de informática, matemática financeira, línguas estrangeiras no ensino médio, e em paralelo outros conteúdos clássicos ou mesmo componentes curriculares importantes vão sendo completamente extintos ou tendo a sua carga horária subtraída ao máximo, como foram o caso das disciplinas de Educação Física, Artes, Filosofia, História e Geografia.

Dentro do novo contexto da chamada reestruturação produtiva do toyotismo se privilegiaram as disciplinas estritamente voltadas às demandas imediatas do mercado globalizado, como as linguagens, as matemáticas e a informática. Aqueles outros saberes e conhecimentos tradicionais que não atendiam diretamente a esta nova formação pragmática, empreendedora, flexível e polivalente se tornam secundarizados e totalmente descartáveis dentro dos novos currículos construídos e adequados à esta nova formação do trabalhador. Como exemplo atual se destaca a própria disciplina de Educação Física, e ainda as Artes, Geografia, História e a Filosofia. Estas disciplinas vem sofrendo ao longo dos últimos anos a diminuição de suas cargas horárias nas escolas diante da  implementação das políticas públicas educacionais de origens neoliberais, na forma de parâmetros curriculares nacionais e as consequentes mudanças nas matrizes curriculares tanto nas escolas quanto nas universidades.  Ressalta-se ainda a própria exclusão total destas disciplinas nos currículos escolares, pois não atendem às características exigidas na formação do novo tipo de trabalhador flexível, polivalente, servil e útil do século XXI. O interesse do mercado flexível de cariz toytista é um trabalhador altamente submisso, dócil, servil e alienado, que colabore pró-ativamente na produção do mais valor, cooperando para a reprodução do capital e para a própria exploração e aniquilamento do trabalhador. Sob o olhar do capital, não é importante o conhecimento da história, dos saberes filosóficos, das produções artísticas ou a aprendizagem da cultura corporal, pois todos estes conteúdos, na ótica do capital, oneram e produzem mais gastos para a educação formal, além de demandar também mais tempo para a preparação do trabalhador, tendo a máxima capitalista: “Tempo é dinheiro”. E além de tudo, quanto mais alienado o trabalhador, melhor será o controle e mais efetiva a sua exploração.

A ênfase que se tinha na formação do trabalhador fabril do século XIX e posteriormente na organização fordista do século XX com características de formação de um corpo forte, disciplinado, obediente e saudável vai perdendo força para a formação de um corpo de novo tipo, ou seja, pró-ativo, polivalente e  para o desempenho. As novas exigências agora passam a ser uma atitude cooperativa, pensamento colaborativo com a produção, operar plataformas virtuais, apertar botões e vigiar as máquinas robotizadas. Secundarizando assim aquela antiga Educação Física de outrora, ligada à aptidão física e ao paradigma do corpo forte, saudável e disciplinado.

A disciplina de Educação Física, assim como as demais já citadas, sofreram ao longo das primeiras décadas deste século as consequências deste rápido processo de esvaziamento de conteúdos e da multiplicação dos chamados “currículos mínimos”, que foram construídos em larga escala, principalmente na época da ditadura militar brasileira, mas que voltam à cena neste atual século XXI, período marcado pela precarização da vida e de barbárie no trabalho. Porém, a Educação Física sofre também outros ataques, como por exemplo, a mercantilização do corpo através da indústria do fitness, através da promoção da ditadura da beleza e do culto ao corpo como formas de ampliação do mercado do mundo fitness/welness, utilizando-se da privatização das práticas corporais nas formas de mega academias de ginástica. Assim sendo, as práticas corporais dentro das aulas de Educação Física na escola vão sendo deslocadas para o campo não escolar, ou seja, para o mercado privado e excludente das academias de ginástica, que até então, experimentavam um período de grande expansão em todo o mundo antes de iniciar a pandemia do novo coronavírus.

 

Os velhos desafios da Educação Física e o novo coronavírus

 

A pandemia do novo coronavírus não somente descortina os velhos problemas e desafios da educação física, mas também potencializam essas nossas mazelas de forma exponencial. Aumentaram os problemas relacionados ao chamado Ensino à Distância (EaD), que impossibilita a práxis pedagógica das atividades relacionadas à cultura corporal, através das limitações e da precariedade das plataformas digitais de mediação de aulas, e em paralelo fez explodir um problema que já existia antes da pandemia, ou seja, a exclusão digital de milhões de estudantes que ficaram sem acesso às chamadas aulas on-line. Não somente isso, mas as aulas de educação física eram sempre planejadas e executadas com prioridade aos contatos e se realizavam normalmente em aglomerações humanas. É fato porém, que não existem aulas de futebol, basquete, voleibol, natação, dança, ginástica sem os centenas de milhares de contatos entre alunos. Aglomerações e contatos são essenciais em aulas de educação física. Não é à toa ou mera coincidência que as aulas de educação física são as preferidas de crianças e adolescentes nas escolas brasileiras. Os contatos e aglomerações são as marcas mais importantes da humanidade. Sem os contatos físicos e as aglomerações sociais não existiriam a história e nem a vida humana na Terra. O grande dilema não diz respeito apenas à realização do distanciamento social, que é fundamental e necessário para a diminuição de contágios e consequentemente de mortes pelo vírus Sars-Cov-2, mas sim pelo total descontrole e tragédia que vem se configurando a  pandemia no Brasil. Países que conseguiram conter a pandemia durante o ano de 2020, mas que atualmente em 2021, enfrentam as chamadas terceiras e quartas ondas mais intensas do que aquelas. As vacinas tem cumprido bem o seu papel, porém, somente ações farmacológicas ou regras de biossegurança aplicadas de forma isoladas tem se mostrado ineficazes no combate às altas transmissões virais. 

Os problemas atuais não dizem respeito apenas à educação física ou à educação brasileira em geral, este problema atual do descontrole da pandemia se tornou um problema mundial, que correlaciona saúde, educação, economia, cultura, política, ecologia e a vida de bilhões de pessoas que moram em países pobres como o Brasil, e que estão em grande risco, neste atual contexto de pandemia do vírus Sars-Cov-2.

A discussão atual não deve jamais se resumir  apenas sobre quais os melhores critérios de biossegurança para a realização de aulas de educação física, matemática ou de geografia. A grande questão é a total impossibilidade de reinício de qualquer atividade escolar no momento em que a maioria das crianças brasileiras ainda não foram vacinadas. Segundo os dados apresentados pelo próprio Ministério da Saúde (www.saude.gov.br), os óbitos por covid-19 entre crianças representam 0,4% do total de mortes, ou seja, mais de 2.500 crianças e adolescentes já perderam a vida na pandemia no Brasil, este que é um dos maiores índices de mortalidade infantil por covid-19 em todo o mundo. Tais números cresceram no ano de 2021 quando iniciou a maior flexibilização das atividades econômicas e principalmente com a abertura das escolas e creches em todo o Brasil.  O reinício das aulas, sem a vacinação de crianças e adolescentes pode ajudar também a iniciar uma nova terceira onda de contaminações, como ocorre hoje em grande parte dos países europeus.

Repensar sobre o futuro da educação física não se resume apenas em definir ou escolher os protocolos mais seguros e eficazes para a realização das atividades, mas é levar o debate muito além disso, é refletir também sobre a precarização e sucateamento das escolas públicas, onde muitas não possuem água nos banheiros para lavagem das mãos, é discutir sobre o processo de exclusão digital que faz aumentar ainda mais o abismo entre ricos e pobres, é discutir sobre a saúde emocional e física das crianças em isolamento social, debater também sobre o desemprego e a fome que atinge milhões de famílias em todo o país.

Sabemos que atualmente uma voraz e rápida terceira onda de contágios avança sobre países de diversas regiões do planeta, mesmo em países com a cobertura vacinal bastante adiantada, como Portugal, Espanha, Alemanha, e que tomaram as medidas corretas no seu devido tempo, porém, os índices de contágios (não de óbitos, graças às vacinas) voltaram a subir de forma drástica e descontrolada nestas mesmas regiões, provando que o vírus é muito mais perigoso do que se imaginava. Entretanto, estes países, além de terem reduzido o número de óbitos e de contágios durante o primeiro semestre deste ano, conseguiram ganhar mais tempo para lidarem com a pandemia, preparando melhor o sistema de saúde, entendendo a complexidade do comportamento do vírus e os procedimentos mais adequados de tratamento aos infectados. 

Sendo assim, fica claro que não se deve abrir escolas sem a vacinação das crianças e adolescentes em Goiás. Os números, mesmo sendo subnotificados, apontam que os contágios ainda estão totalmente fora de controle na capital e cidades do interior de Goiás. A questão não é somente  escolher qual o protocolo de segurança mais seguro e adequado que se deve construir para um projeto de aulas de educação física, mas sim promover a abertura das creches e escolas com o reinício das aulas somente após a vacinação completa de crianças e adolescentes.

Segundo os critérios criados pela própria OMS (Organização Mundial de Saúde) e que podem nortear a abertura de escolas são: o primeiro critério, segundo a OMS, diz que a cidade ou região deve possuir um sistema de saúde capaz de identificar, testar, isolar, rastrear todos os contatos e tratar as pessoas infectadas. O segundo critério é a garantia de que os locais de trabalho e os demais ambientes  frequentados por todas as pessoas sejam locais seguros  contra os contágios. O terceiro critério diz respeito a adoção de barreiras sanitárias para atender os casos de pessoas já contaminadas e cuja origem seja de fora da cidade ou do país (casos importados). O quarto critério é o controle de eventuais surtos em locais estratégicos como hospitais e casas de repouso. O quinto critério é a adoção de medidas preventivas para a conscientização da população com relação à pandemia e suas formas de contágio. O sexto e último critério sugere que a reabertura e flexibilização das atividades econômicas, sociais e culturais  devem ocorrer somente quando as taxas de contágios estiverem em queda, ou seja, somente quando a pandemia estiver controlada.

Duas regras importantes para a flexibilização das atividades e que não foram listadas pela OMS é a adoção de políticas econômicas robustas de fomento para as empresas e para todos os trabalhadores de atividades não essenciais que foram obrigados a participarem do isolamento social, e ainda a cobertura vacinal completa (>90% da população).

Assim sendo, vemos que em Goiás e em Goiânia, os governos não adotaram e continuam  não adotando de forma integrada nenhuma dessas medidas para a reabertura. O que presenciamos são flexibilizações precoces e aligeiradas que são os grandes responsáveis pelo número exagerado de contágios e mortes. E os professores de Educação Física e todos os demais trabalhadores em geral, estão arriscando as suas próprias vidas para a manutenção diária de suas necessidades materiais e financeiras, porque não existe no Brasil nenhuma ação coordenada para a promoção do controle da pandemia por parte dos governos (Municipal, Estadual e Federal), e somente priorizar o programa de vacinação será uma ação insuficiente frente à complexidade da pandemia e de suas consequências. 


                            Foto 04 - Academia de ginástica ESEFFEGO com ventilação natural e espaço arejado


As academias do Brasil já estão funcionando na maioria das cidades e capitais do país e foram criados diferentes  protocolos de saúde e segurança em vários estados para evitar o contágio entre os frequentadores destes estabelecimentos comerciais, como uso de máscaras, tapetes sanitizantes, álcool em gel, distanciamento entre os equipamentos, criação de horários alternativos e de forma escalonada. Porém, o que se observa em muitas academias de Goiânia é o total descumprimento destes protocolos sanitários. Também em conversas e entrevistas com professores de educação física que trabalham em academias, há relatos de muito estresse e apreensão pelo medo do contágio, pela sobrecarga de trabalho, desvio de funções quando professores tem que medir a temperatura de alunos na entrada da academia, grande número de alunos por turmas, que impossibilita o distanciamento social, alunos com a máscara no queixo e etc. A arquitetura da maioria das academias, que não permite a circulação natural do ar, e as intensas atividades aeróbicas e anaeróbicas realizadas pelos alunos no seu interior, infelizmente tornam as academias de ginástica os locais mais propícios para o contágio pelo vírus Sars-Cov-2. Haja visto que uso de termômetros para medição de temperatura corporal e tapetes sanitizantes são totalmente inócuos para combate da Covid-19, o que de fato protege contra os contágios são o uso adequado das máscaras, o distanciamento social seguro e a vacinação, destacando que as vacinas evitam casos graves e mortes, sendo que está também comprovado que pessoas vacinadas transmitem menos o vírus do que as não vacinadas.

Todas essas questões devem ser debatidas e levadas em consideração, evitando cair naquela vela armadilha da falsa dicotomia “Saúde X Economia”. O que se coloca na mesa é a realidade de um país que não possui nenhuma política pública nacional, coordenada e integrada no combate ao covid-19 e que atualmente aposta erroneamente apenas na vacinação, como a única arma de combate à pandemia. Ou fazemos esse debate hoje ou seremos cúmplices das necropoliticas praticada pelo Estado Brasileiro no atual contexto da pandemia do novo coronavírus. E essa discussão não deve se circunscrever apenas ao debate educacional, mas ao engajamento político em prol das milhares de vidas de brasileiros que estão sendo abreviadas pelo atual modelo de mundo em que vivemos, caracterizado essencialmente pela exploração do homem pelo homem e pela destruição insaciável da natureza. O que está em jogo é a nossa própria sobrevivência como seres humanos nas circunstâncias da barbárie atual.

 

 

 

                 

Bibliografia

 

BRASIL. Lei nº13.415 de 16 de fevereiro de 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13415.htm. Acesso em: 10 de maio. de2017.

______. Medida Provisória nº 746 de 22 de setembro de 2016. Disponível em : http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=48601-mp-746-ensino-medio-link-pdf&category_slug=setembro-2016-pdf&Itemid=30192 . Acesso em: 10 de maio de 2017

NOZAKI, H.T. O Mundo do Trabalho e o Reordenamento da Educação Física Brasileira. Revista da Educação Física UEM. v. 10 n. 01,n p. 3-12 1999.

SOARES, C.L. Imagens do Corpo “Educado”: um olhar sobre a ginástica no século XIX. In: FERREIRA NETO, A. Pesquisa Histórica em Educação Física. Vitória: CEFD/UFES, 1997.

 

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Mulher, Trabalho e Pandemia

 




 

(Escrito por Renato Coelho)

A pandemia do novo coronavírus tem afetado todos os países e tem demonstrado o fracasso mundial na assistência à saúde dos trabalhadores. Observamos, porém, que a propagação do vírus pelo planeta afeta de forma distinta os seus habitantes, promovendo consequências e impactos que vão muito além dos números, estatísticas ou gráficos. A geopolítica da pandemia envolve questões não apenas biológicas, genéticas ou sanitárias, mas está relacionada sobretudo a questões sociais e de classe. Vemos assim que a pandemia tem afetado os trabalhadores mais pobres e de forma mais acentuada as populações mais vulneráveis. Numa sociedade dividida em classes, a pandemia se torna bastante seletiva em seus efeitos negativos, ou seja, os contágios e óbitos são proporcionalmente maiores entre a população trabalhadora e a mais pobre.

Os números da pandemia no Brasil apontam também que a maior parcela das vítimas dos contágios pelo novo coronavírus são do sexo feminino. As mulheres brasileiras estão se contaminando numa proporção muito maior do que os homens na pandemia do novo coronavírus, entretanto, o número de óbitos entre a população masculina é maior em relação às mortes de mulheres por covid-19. Segundo pesquisas realizadas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), 56% dos infectados pela covid-19 no Brasil são do sexo feminino e 44% são do sexo masculino, porém, em relação ao número de óbitos pela pandemia no Brasil os números se invertem, sendo 55% do sexo masculino e 45% do sexo feminino. (DIAS, 2020). Além da pandemia de contágios de covid-19, o Brasil também experimenta atualmente uma pandemia de violência contra as mulheres e uma pandemia de feminicídios, que também seguem um modelo de curva ente  ascendente e exponencial. 

 




A explicação para esse fenômeno não se deve apenas às diferenças genéticas ou biológicas entre homens e mulheres, também não pode ser explicado somente pelas características ou pela dinâmica de contágio do vírus Sars-Cov-2. A covid-19 inicialmente era considerada uma doença respiratória e a sua origem em Wuhan na China foi a princípio tratada pelas autoridades locais como uma epidemia que causava pneumonia.  Porém, com o passar dos meses, com as novas descobertas e as experiências acumuladas no tratamento da Covid-19, descobriu-se que se trata de uma doença multissistêmica, ou seja, capaz de atacar todos os órgãos do organismo e não somente os pulmões como se pensava iniciamente, além disso, ainda é uma doença muito nova e desconhecida apesar de todas as descobertas científicas a seu respeito. Daí ser importante também uma análise multifatorial sobre essa doença letal. A ciência ainda engatinha na compreensão da covid-19 sobre o organismo humano e as suas consequências a médio e a longo prazo.

Não se sabe ao certo as razões biológicas capazes de explicar, por exemplo, o maior número de mortes entre os homens. No entanto, já é comprovado cientificamente que o  sistema imunológico feminino é mais eficiente do que o sistema imunológico masculino. Alguns cientistas apontam que a explicação para tal fenômeno esteja no cromossomo “X” humano, que possui importante atuação sobre o sistema imunológico, sendo que as mulheres possuem o dobro de cromossomos X nas células (mulheres XX) do que os homens (XY). O cromossomo X possui vários genes importantes para a composição e o funcionamento do sistema imunológico. Outras pesquisas ainda recentes apontam para questões de diferenças hormonais entre homens e mulheres, onde o hormônio feminino, o estrogênio, possui importante papel também sobre o funcionamento das células que compõe o sistema imunológico. Pode-se destacar ainda, questões de âmbito cultural, capazes de demonstrar que o homem se preocupa menos com os cuidados de saúde, procurando, na maioria dos casos, o tratamento médico de forma tardia, diferentemente do comportamento das mulheres de uma forma em geral. (DOMINGUES, 2021).

Na sociologia do trabalho também se evidenciam as questões de gênero capazes de explicar o maior contágio por covid-19 entre mulheres. Sabe-se que os cargos mais importantes do mercado de trabalho, como os de chefia, gerência e presidência são ocupados majoritariamente por homens. Os salários das mulheres são mais baixos para os mesmos cargos e funções ocupados por homens. Pesquisas do IBGE (2018) apontam que além das mulheres receberem salários inferiores aos dos homens, elas possuem uma carga horária semanal de trabalho maior do que a dos homens ocupantes das mesmas funções. Ao considerarmos as mulheres negras, as discrepâncias são ainda maiores em relação aos homens brancos, devido ao chamado racismo estrutural brasileiro.

 

Em 2018, o rendimento médio das mulheres ocupadas com entre 25 e 49 anos de idade (R$ 2.050) equivalia a 79,5% do recebido pelos homens (R$ 2.579) nesse mesmo grupo etário. Considerando-se a cor ou raça, a proporção de rendimento médio da mulher branca ocupada em relação ao do homem branco ocupado (76,2%) era menor que essa razão entre mulher e homem de cor preta ou parda (80,1%) (IBGE, 2018).

 

Nos seus lares, dentro do modelo de sociedade capitalista e patriarcal atual, as mulheres ainda possuem responsabilidades exclusivas com as tarefas domésticas e os cuidados com os filhos. Além da carga horária de trabalho superior as dos homens, as mulheres ainda possuem o chamado “terceiro expediente” ou “expediente doméstico”, que consiste nos trabalhos de casa no cuidado dos filhos e deveres domésticos em geral. E ainda assim, as mulheres precisam agendar tempo para os estudos e tarefas das escolas ou de faculdades que frequentam no contra turno do trabalho.

A sociedade capitalista impõe a hierarquia de gênero como forma de controle e opressão sobre as mulheres, para assim aumentar a mais valia e a exploração sobre o sexo feminino no chamado mercado de trabalho, e cuja expressão se reflete na super-exploração da mulher como instrumento de mão de obra mais barata.

  

Considerando-se as ocupações selecionadas, a participação das mulheres era maior entre os trabalhadores dos serviços domésticos em geral (95,0%), Professores do Ensino fundamental (84,0%), trabalhadores de limpeza de interior de edifícios, escritórios, hotéis e outros estabelecimentos (74,9%) e dos trabalhadores de centrais de atendimento (72,2%). No grupo de diretores e gerentes, as mulheres tinham participação de 41,8% e seu rendimento médio (R$ 4.435) correspondia a 71,3% do recebido pelos homens (R$ 6.216). Já entre os Profissionais das ciências e intelectuais, as mulheres tinham participação majoritária (63,0%) mas recebiam 64,8% do rendimento dos homens (IBGE, 2018).

 



Gráfico 01 – Proporção entre homens e mulheres em distintos cargos de trabalho

 

 

Segundo Assunção (2011), a precarização e a terceirização do trabalho capitalista, tem cada vez mais o rosto de uma mulher, ou seja, o sistema do capital faz da super-exploração sobre a mulher um mecanismo importante para a sua reprodução e dominação, fazendo perpetuar as desigualdades e potencializando ainda mais as divisões entre homens e mulheres e entre toda a classe trabalhadora.

Nos dados acima do IBGE (2018) (ver gráfico 01 acima) vemos que os cargos mais altos e com melhores salários são ocupados majoritariamente por homens. Já as mulheres possuem salários inferiores aos dos homens e ainda tem maior percentual de participação em atividades de limpeza, tele-atendimento e entre docentes do ensino fundamental. Essas características do trabalho feminino no Brasil evidencia o alto grau de exploração e de precarização em que se encontram as mulheres brasileiras no mercado de trabalho.

Ao analisarmos os principais cargos desempenhados pela maioria das mulheres, pode-se inferir que tais funções colocam as mulheres numa posição de maior exposição ao vírus Sars-Cov-2, pois quanto maior a precarização do trabalho e menores os salários, maior se torna a vulnerabilidade do trabalhador no contexto da pandemia. Quanto mais precarizado o trabalho, implica numa maior circulação e exposição deste trabalhador, tornando-o mais exposto no contato com o público em geral e mais vulnerável com relação aos baixos salários. Um trabalhador precarizado dificilmente tem acesso ao trabalho remoto (“home-office”) e ainda não possui acesso ao transporte público seguro e de qualidade. Todos estes fatores tornam as mulheres alvos mais fáceis para o vírus Sars-Cov-2 devido à sua maior exposição ao vírus, ou seja, a precarização do trabalho implica também na precarização da vida humana, e no caso específico a maior precarização da vida da mulher. Vê-se assim, as relações de poder imbricadas dentro das relações de gênero, e que demonstram a exploração capitalista.

O trabalhador em geral vende o seu corpo e o seu tempo, recebendo em troca o seu mísero salário. Nesta forma de trabalho abstrato, o sujeito que trabalha se aliena, não sendo capaz de reconhecer a si mesmo no trabalho, transformando-se também em mercadoria e em objeto. O produto do seu trabalho também lhe é estranho. O processo de trabalho se torna fragmentado, não compreende o início, meio e fim da ação no trabalho. O trabalhador se especializa na sua função, não possui mais a visão holística sobre o seu labor. Sujeito e produto se transformam em mera mercadoria. Dentro destas relações no capitalismo, na exploração da  natureza  e na exploração do próprio ser humano, faz surgir o trabalhador-mercadoria. O homem e a mulher para sobreviverem se veem obrigados a vender a sua força de trabalho e recebendo em troca o seu mísero salário. Tudo o que se produz não é mais para satisfação das suas próprias necessidades humanas (valor de uso), mas para satisfação e deleite de um outro que o explora, um patrão desconhecido chamado mercado (valor de troca). Este mercado insaciável do capital é capaz ainda de se apropriar das diferenças de gênero, do machismo, da violência física e verbal contra a mulher, e do feminicídio existentes e enraizados na sociedade, e utilizando-os como instrumentos de maior dominação e de maior exploração sobre a mulher. As relações tóxicas e as relações de dominação sobre as mulheres tem suas raízes dentro das próprias relações de exploração capitalista, daí o aumento da violência contra as mulheres, a cultura misógina e o feminicídio em expansão junto com o chamado processo civilizatório do capital.

 

Bibliografia Consultada:

 

ASSUNÇÃO, Diana (Org.). A precarização tem rosto de mulher. São Paulo: Edições Iskra, 2011, 132 p.(Coleção Iskra Mulher).

 

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2018. Disponível em :<https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/23923-em-2018-mulher-recebia-79-5-do-rendimento-do-homem>. Acesso em: 26/01/2021.

 

DOMINGUES, N.  Novas pistas ajudam a esclarecer por que a covid-19 mata duas vezes mais homens que mulheres - estudos indicam que a genética feminina tem efeitos protetores contra o coronavírus. Jornal El País, jan. 2021. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/ciencia/2021-01-22/novas-ideias-para-saber-por-que-a-covid-mata-duas-vezes-mais-homens-que-mulheres.html>. Acesso em: 26/01/2021.

 

DIAS, R. Covid-19 atinge principalmente mulheres, mas mata mais homens, diz estudo da UFMG. Jornal Estado de Minas, 09/09/2020. Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/09/09/interna_gerais,1183974/covid-19-atinge-principalmente-mulheres-mas-mata-mais-homens-ufmg.shtml>. Acesso em: 26/01/2021.

 

 

 

 

 

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Racismo, Trabalho e Pandemia.

 


(Escrito por Renato Coelho)


Em plena pandemia do novo coronavírus temos assistido a multiplicação de manifestações anti-racistas em vários países do mundo, e não é por menos, pois com o surgimento da pandemia houve também um aumento exponencial da violência contra os negros, indígenas e mulheres. A pandemia não somente tem escancarado a existência do racismo estrutural na sociedade capitalista, assim como também tem feito aumentar a exclusão e a morte de negros.

Temos como exemplos emblemáticos a morte brutal do trabalhador norte americano George Floyd na cidade de Minneapolis em 2020, assassinado por agentes da polícia local. E mais recente a morte do soldador João Alberto no interior de um hipermercado em dezembro de 2020 na cidade de Porto Alegre no Brasil,  também morto covardemente por agentes de segurança. Ambas as mortes demonstram a existência de um racismo estrutural na sociedade, onde o negro é sempre tratado de forma discriminatória, desumana e com ações violentas, recebendo um tratamento diferenciado e desproporcional em relação aos brancos.

 Durante toda a pandemia foi constatado um número gigantesco de contágios e de mortes por covid-19 no Brasil, sendo computados até o momento cerca de 611 mil mortes e  mais de 22 milhões de contágios (www.saude.gov.br). Esses números são absurdamente altos, mesmo sabendo que as estatísticas oficiais são todas subnotificadas. Tais números na verdade evidenciam e demonstram um extermínio de classe no Brasil durante a pandemia do novo coronavírus, onde pobres, desempregados, ambulantes, negros, idosos e índios são as maiores vítimas da covid-19. Sabemos ainda que todas essas mortes se devem essencialmente à falta de assistência médico hospitalar às vítimas da covid-19 e à total ausência de políticas prevenção e de mitigação contra os novos contágios. Não somente no Brasil, mas em todo o mundo, sejam em países ricos ou pobres, o atendimento médico hospitalar se transformou apenas em negócio, onde a saúde humana sempre foi tratada apenas como mercadoria e vendida por um alto preço por empresas de planos de saúde, farmácias, indústrias de remédios, redes de hospitais e fabricantes de vacinas, ficando os pobres e trabalhadores totalmente excluídos do acesso ao atendimento de saúde (ver gráficos 01 e 02 abaixo IBGE PNAD 2020) Toque no gráfico para ampliação.

 


 Gráfico 01 – Busca por atendimento de saúde pela população com sintomas da covid-19 no Brasil (fonte: https://covid19.ibge.gov.br/pnad-covid/saude.php). Toque no gráfico para ampliação.


No gráfico 01 acima observamos que apenas 2 milhões de pessoas com sintomas de Covid-19 no Brasil buscaram atendimento médico-hospitalar. Em contrapartida, segundo o gráfico 02 abaixo, 6,3 milhões de pessoas com sintomas da Covid-19 não buscaram atendimento de saúde. As estatísticas comprovam que a ausência de atendimento de saúde às vítimas da pandemia no Brasil é uma realidade alarmante e causa influência direta no grande quantitativo de mortes no país causado pela pandemia do novo coronavírus.




Gráfico 02 – Providências tomadas por aqueles que não buscaram por atendimento de saúde e que apresentavam sintomas da covid-19 no Brasil (fonte: https://covid19.ibge.gov.br/pnad-covid/saude.php).  Toque no gráfico para ampliação.

 

O sistema capitalista não possui nenhum compromisso com a qualidade ou acesso à saúde pelos trabalhadores em geral. E quando a saúde das pessoas se transforma apenas em mercadoria, o que se vislumbra no presente é a exclusão e o extermínio de classe entre os trabalhadores pobres em todo o mundo, seja em países ricos como os EUA ou em países pobres, como no caso do Brasil. Mesmo possuindo um sistema público e gratuito de saúde (Sistema Único de Saúde – SUS), que atende uma grande parte da população mais pobre e carente, que não possui condições de pagar um plano de saúde privado, a pandemia contabiliza milhares de vítimas entre a classe mais pobre. Tal sistema público brasileiro, o SUS, encontra-se atualmente sucateado, com precarização das condições de trabalho e ainda com baixa remuneração dos trabalhadores da saúde. Diante desta triste realidade, não podemos nunca dizer que a covid-19 é uma doença “democrática”, pois ela atinge de forma distinta, as diferentes classes sociais, porém, com impactos, consequências e índices de mortalidade bastante diferenciados (ver gráfico 03 abaixo). No gráfico abaixo do IBGE PNAD 2020 (Toque no gráfico para ampliação) podemos analisar que a maior parte das pessoas contaminadas pelo novo coronavírus no Brasil possuem um rendimento familiar per capta inferior a dois (2) salários mínimos. Já a população com renda superior a quatro (4) ou mais salários mínimos per capta foi a que menos se contaminou pelo vírus Sars-Cov-2. Quando se observa e analisa os números da pandemia no Brasil, vê-se claramente que a pandemia é capaz de desmascarar mazelas e injustiças latentes no seio da sociedade brasileira, como as disparidades e abismos sociais, a violência de gênero e ainda o racismo estrutural.



Gráfico 03 – Distribuição dos casos positivos de covid-19 por faixa salarial. (fonte: https://covid19.ibge.gov.br/pnad-covid/saude.php). Toque no gráfico para ampliação.


Em outubro de 2020 o Brasil ultrapassou a marca de 600 mil mortes por covid-19 e com mais de 20 milhões de contágios, ficando atrás somente dos EUA em termos numéricos. Estes não são apenas números, a covid-19 é um agente social, e por trás desta complexa e macabra  matemática dos números na pandemia, existem nuances, significados e sentidos em que apenas a matemática não é capaz de explicar sozinha, pois exige um olhar mais acurado e interdisciplinar para uma situação grave de pandemia.

Segundo a OMS, o índice estimado de letalidade do novo coronavírus no mundo é de 0.6%, ou seja,  para cada grupo de 1.000 contaminados, 6 pessoas acabam indo a óbito. Este índice é considerado altíssimo, e demonstra que o vírus é altamente mortal. Para se ter uma ideia, o vírus da gripe A (H1N1) na pandemia de 2009 possuía um índice de letalidade igual a 0,01%. O índice de letalidade pode variar de região para região e também pode alterar em distintas fases da pandemia. O número de pessoas contaminadas pelo vírus Sars-Cov-2 no Brasil é muito grande, porém, o percentual de letalidade não é igual para todos os grupos de pessoas infectadas. Observou-se que o percentual de mortes entre pessoas negras internadas com a covid-19  é maior do que em brancos também internados. Constatou-se também que a mortalidade entre pacientes de hospitais públicos no Brasil que tratam da covid-19 é bem maior do que em hospitais privados.  A explicação para essas diferenças não se dá através da genética destes pacientes, mas sim através de suas origens de classe social.  

Pesquisas recentes divulgadas pelo NOIS (Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, 2020) da PUC do Rio de Janeiro (https://sites.google.com/view/nois-pucrio), constataram que mais da metade dos negros internados por Covid-19 em hospitais no Brasil morreram. Segundo estes estudos, foram analisados 29.933 casos de covid-19, deste total 8.963 eram negros e 54,78% deles morreram. Na mesma pesquisa dos 9.998 brancos internados 37,93% morreram com diagnóstico de covid-19. Analisando os números da pesquisa, pessoas negras entre 30 e 39 anos, tem 2,5 vezes mais chances de morrerem ao serem internadas por Covid-19 do que pessoas brancas da mesma idade (ver gráfico 04 abaixo). Toque no gráfico para ampliação. A explicação da origem destas disparidades numéricas se dá através do chamado racismo estrutural existente no Brasil que promove as diferenças sociais entre pessoas brancas e negras no país. Pesquisas realizadas nos EUA também apontam um índice maior de letalidade pela covid-19 entre negros daquele país.



Gráfico 04 – Percentual de óbitos ou recuperados por raça/cor (fonte: https://sites.google.com/view/nois-pucrio). Toque no gráfico para ampliação.

O racismo estrutural existente no Brasil é o responsável pelos tristes e nefastos números da pesquisa acima. Por mais de 500 anos os negros no Brasil sofreram e ainda sofrem discriminação e exclusão aos meios de acesso ao trabalho, saúde, lazer, estudo e moradia. A herança escravocrata, as imensas desigualdades de classe e a legitimação do racismo e da miséria pelo sistema capitalista, são os principais promotores da alta de letalidade por covid-19 entre os negros brasileiros. Obviamente que as pessoas negras no Brasil que possuem menor acesso às políticas públicas de saúde com qualidade, à moradia digna, ao saneamento básico, e que possuem menores salários e renda do que os brancos,  que tem maiores dificuldades de acesso à escola e ao ensino superior, que são também excluídas do lazer e de uma alimentação completa e de qualidade em comparação com os brancos, consequentemente terão maiores comorbidades como pressão alta, diabetes, sobrepeso e várias outras doenças que podem agravar o estado de saúde ao contrair o novo coronavírus, aumentando assim o chamado índice de letalidade em relação à covid-19.

Pretos e pardos no Brasil possuem o maior índice de letalidade da covid-19 em internações, e também segundo o IBGE, formam a maioria dos trabalhos de menor remuneração, o que evidencia mais uma vez a questão do racismo estrutural no Brasil e a sua relação com a pandemia, já que as pessoas mais expostas são aquelas que exercem trabalhos mais precarizados, como vendedores ambulantes, vigias, atendentes, balconistas, entregadores e etc., e estas são as que possuem maior facilidade de serem contaminadas pelo vírus e adquirirem a covid-19. Enquanto uma minoria de classe mais alta faz o chamado trabalho remoto de suas casas, a maioria formada pelos mais pobres é obrigada a trabalhar no “front” da pandemia, usando diariamente o transporte coletivo, trabalhando nas ruas, supermercados, nas indústrias e no comércio em geral, possuindo as funções ou cargos de entregadores de aplicativos, vigias de supermercados, motoristas de ônibus, funcionários de limpeza, balconistas, operadores de telemarketing, operários, garis, vendedores ambulantes e etc.


Tabela 01 - Relação de mortalidade por covid-19 e renda familiar na cidade de São Paulo (OBSERVATÓRIO COVID-19 BR, 2021).

Na tabela acima (OBSERVATÓRIO COVID-19 BR, 2021) vemos a relação de mortalidade por covid-19 segundo a distribuição de renda no município de São Paulo. Observa -se nesta tabela que  na medida em que se aumenta a pobreza (menor o salário) o risco de óbito por covid-19 aumenta, chegando a ser duas vezes maior entre a população mais pobre.


Tabela 02 - Relação de mortalidade por covid-19 e número de moradores por domicílio na cidade de São Paulo (OBSERVATÓRIO COVID-19 BR, 2021).

Na tabela 02 acima (OBSERVATÓRIO COVID-19 BR, 2021) tem-se a relação do número de moradores por domicílio  (densidade domiciliar) e a mortalidade por covid-19. Notamos na tabela que a medida em que se aumenta a densidade domiciliar a mortalidade também aumenta de forma significativa, chegando a ser a mortalidade 62% maior em domicílios com mais moradores residentes em comparação com domicílios com média inferior a 2,7 moradores por casa (ver tabela 02).

A pandemia escancara as injustiças sociais no Brasil, colocando em evidência o racismo estrutural brasileiro e as suas consequências. O Brasil é  um dos países mais racistas do mundo, o vírus Sars-Cov-2 não matou de forma igual e democrática, o vírus carrega a marca das injustiças e misérias sociais como o racismo, e acaba matando mais os trabalhadores pobres e também os trabalhadores pretos, que são as principais vítimas da exclusão social e também agora as principais vítimas da pandemia.

 

                                        Bibliografia 

                                  

OBSERVATÓRIO COVID-19 BR.  O impacto da desigualdade na mortalidade por covid-19. Em: <https://covid19br.github.io/analises.html?aba=aba6> . Visualizado em: 17/05/2021.