Jogador do Flamengo na volta dos jogos no Maracanã sem torcida na pandemia (2020) |
Sempre governos de diferentes
países e em diversas épocas utilizaram os esportes como instrumento ideológico
e de manipulação da população. E nestes tempos tenebrosos de pandemia não tem
sido diferente. As velhas e demagógicas políticas de controle estão sendo
constantemente utilizadas por governos, instituições e também pela grande mídia
no sentido de forçar as pessoas a acreditarem que mesmo em um contexto de
pandemia, com as curvas ascendentes de mortes e de contágios pelo novo coronavirus
no Brasil, que a vida pode simplesmente seguir nos
antigos padrões da normalidade social, com viagens, passeios em shoppings
centers, finais de semana na praia, matinês no cinema, barzinhos com os amigos,
e ainda que à noite podemos em casa torcer pelo time do coração nos campeonatos nacionais
transmitidos pela TV. Esse bombardeio constante de propaganda da falsa
normalidade atinge a todos e colabora com a necropolítica do Estado brasileiro
em transformar a curva exponencial da pandemia no Brasil na mais alta e longa
do mundo, sob um platô com uma média móvel de 900 a 1000 mortes diárias. Os
números e a matemática ratificam que a vida não segue nada de normal.
O esporte a partir do século XX
se transforma em espetáculo midiático e em megaevento de entretenimento de
bilhões de espectadores em todo o mundo. O esporte mercadoria se transforma em
produto de consumo e é ofertado não mais como exercício físico, promoção de bem
estar ou prática de lazer, mas é transformado tão somente em objeto de contemplação e de fethiche.
O sujeito que antes praticava o esporte e também o próprio esporte se transformam em
objetos reificados pelo capital. O outrora ativo praticante e desportista do dia a dia ou aquele torcedor apaixonado pelo seu time e
frequentador dos estádios desaparecem no mundo do esporte espetáculo moderno e
passam a dar lugar ao consumidor passivo do entretenimento esportes, transformado num mero
sujeito inerte e que apenas contempla virtualmente o esporte espetáculo globalizado,
que se transformou apenas em uma imagem a ser vendida e consumida. Nessa
metamorfose para se enquadrar no processo de fetichização capitalista, o
esporte não apenas se transforma em mais uma mercadoria, mas também perde seus
significados, seus símbolos, regras e tradições. Nesse processo de mercadorização
e de aniquilamento dos sentidos dos esportes, ocorre o empobrecimento e a perda
dos seus elementos constitutivos e essenciais que o ligam a estética, a arte, ao
popular e à história humana.
Mas o esporte não é hoje uma
mercadoria qualquer, mas sim uma mercadoria singular e que movimenta uma cifra
de bilhões de dólares no mundo. E além de produzir uma escala astronômica de
lucros aos seus patrocinadores, os esportes possuem também um capital político
e ideológico incomparáveis. Um exemplo marcante dos esportes como instrumento
ideológico foi demonstrado durante o período da chamada Guerra Fria, quando da
polarização do mundo entre a antiga União Soviética (ex-URSS) e os EUA, que
dividiu o planeta entre países capitalistas
apoiados e liderados pelos EUA e os países do bloco comunista, ligado à
antiga União Soviética. Durante este período as olímpiadas se transformaram em
palco de disputas hegemônicas entre atletas do mundo capitalista versus atletas
do mundo comunista. Nestas disputas, no entanto, o “fair play” nunca existiu,
pois eram constantes e comuns os escândalos com doping envolvendo atletas de
ambos os lados e que utilizavam esteróides anabolizantes e outros fármacos para
alcançarem o pódio e as cobiçadas medalhas olímpicas.
Nos países da América Latina não
foi diferente o uso dos esportes por governos e regimes ditatoriais, sempre
houveram ações estatais que transformaram os esportes em bandeira de propaganda
de representantes políticos ou de partidos. Na Argentina de Perón ao Brasil de
Vargas, sempre se soube do grande poder, do fascínio, do êxtase e da admiração provocados pelos esportes, em especial do futebol, sobre a maior parte
da população latino americana.
Durante o período das ditaduras militares na América do Sul, houveram casos emblemáticos e
históricos onde o Estado se utilizou do esporte para promoção e propaganda de
seus ideais e valores autoritários e repressivos, sob o falso manto do triunfalismo, da eficiência, do mérito
e da sobrepujança, que são as características principais do esporte. E mais ainda, aqueles
que conseguiam alcançar o mérito de serem os mais rápidos, mais velozes e que iam mais
alto ou mais longe nos esportes, eram então convocados a se transformarem em "garotos propaganda" da máquina de publicidade oficial do Estado.
A ditadura militar comandada por Jorge Videla na Argentina utilizou a Copa do Mundo de 1978 como propaganda do regime
ditatorial para o mundo, tentando esconder as mazelas sociais do país, a
pobreza e a violência estatal contra a os opositores ao regime. A Argentina
que era sede da Copa do Mundo FIFA de Futebol em 1978 aumenta a violência e a repressão
aos opositores no país durante o período da Copa. Enquanto a bola rolava nos
gramados argentinos, milhares de pessoas passavam fome nos subúrbios das grandes
cidades devido à miséria no país ou eram presas, torturadas e mortas pela
polícia argentina. Mas a propaganda de
Videla tentava passar ao mundo a visão de uma outra Argentina, bem diferente daquela
que se via nas ruas de Buenos Aires ou nos porões da polícia por todo o país. A
propaganda estatal era a Argentina como
sendo o país do futebol e do triunfo da seleção de Passarela, campeã do mundo em 1978. Mas, para se chegar à final da copa e ao título, o
governo Argentino promoveu várias intervenções junto à Fifa e também na escancarada
manipulação de jogos que beneficiaram o time anfitrião. Um jogo bastante
emblemático foi entre Argentina e Peru durante as semi-finais, onde a seleção Argentina necessitava
vencer a equipe adversária peruana com um placar de 4 gols de diferença para
avançar à próxima fase, e assim também eliminar a seleção do Brasil daquela Copa. Com visita do
general Videla ao vestiário da seleção peruana antes e após o jogo contra a
Argentina, o placar final de 6 X 0 a favor da Argentina, fez a mesma avançar à
final e disputar o título contra a Holanda.
No Chile, da mesma forma o
ditador Augusto Pinochet, passa a promover intervenções e apoiar o Colo Colo,
o time mais famoso e popular da época e
que formava a base da seleção chilena. Com o objetivo também de tentar desviar
a atenção da população chilena e do mundo das barbáries, atrocidades e
genocídios promovidos pela ditadura chilena aos seus opositores, o governo do
ditador Pinochet se utiliza do futebol
como instrumento de controle e para mascarar a realidade. O Estádio Nacional do
Chile em Santiago se tornou na época em um dos maiores símbolos da cruel
ditadura chilena. Este famoso e importante estádio de futebol serviu de local
de prisão e tortura para milhares de simpatizantes e apoiadores do governo deposto de Salvador Allende. Milhares
de chilenos foram assassinados pela ditadura de Pinochet dentro do Estádio Nacional do Chile. Um jogo
que não aconteceu, mas que entrou para a história do futebol mundial foi nas eliminatórias
para a copa do mundo de 1974 na Alemanha, onde a seleção chilena deveria enfrentar
a seleção da antiga União Soviética no próprio Estádio Nacional em Santiago, mas o time russo se recusou a entrar em
campo em protesto contra a ditadura de Pinochet e então a seleção do Chile entra no estádio sem o time adversário e vence
o jogo por W.O, se classificando com o Estádio lotado com mais de 20 mil
torcedores, mas que não assistiram a jogo nenhum.
No Brasil podemos citar também
vários momentos sobre a utilização dos eventos esportivos como instrumento ideológico e de
manipulação, que vão desde os governos
de Getúlio Vargas, passando pelos militares pós 1964 e indo até os governos
atuais.
Um dos episódios mais
emblemáticos e marcantes da história do futebol no Brasil, e sobre a ideologização do maior esporte nacional,
ocorreu em 1970 na disputa da Copa do Mundo do México, onde a seleção comandada
por Pelé & Cia, considerada a maior seleção de futebol de todos os tempos,
se transformou na maior e mais poderosa bandeira de propaganda política da
ditadura militar brasileira. Enquanto milhares de brasileiros, que se opunham à
ditadura, eram torturados e mortos nos porões das delegacias policiais, o
governo exaltava e patrocinava a chamada seleção canarinho que se consagrou
tricampeã no México em 1970. A propaganda estatal sobre a seleção de Pelé não
somente tentava passar uma boa imagem do Brasil no exterior, assim como também
conseguia desviar o foco da população brasileira das questões importantes e
ligadas à fome, à miséria , às injustiças sociais e sobretudo com relação à
violência e repressão institucionalizada do regime contra os próprios
brasileiros. O futebol também ajudou a vender mais tarde a propaganda do “milagre brasileiro”
referente ao crescimento artificial da economia e promoveu dentro e fora do país a falsa
imagem criada pelos militares do regime caracterizado pelo slogan “Brasil
Potência” e “Brasil, País do futuro”.
Nos governos do PT, de Lula e
Dilma, (2002-2016) mais uma vez se gastou muita energia e volumosas quantias em
dinheiro para transformar o país na sede dos dois maiores megaeventos esportivos do planeta, a Copa do Mundo Fifa
2014 e Olimpíadas Rio 2016. O grande êxtase e o entusiasmo em sediar os
megaeventos mais importantes do esporte moderno, contribuíram também para
desviar o foco e a atenção da população brasileira da sua realidade, camuflando
os problemas sociais e servindo de capital politico para o governo. Porém, os
gastos astronômicos com a construção das chamadas Arenas de futebol, que ultrapassaram os 30 bilhões de reais (somente o estádio Mané
Garrincha em Brasília custou cerca de 1,8 bilhão, e foi considerado na época o estádio mais caro do planeta). Os gastos com as Olímpiadas do Rio em 2016 ultrapassaram os
gastos com a copa do mundo de 2014, chegando a cifra de 40 bilhões de
reais. Os altos gastos com os megaeventos, as constantes denúncias de corrupções envolvendo os megaeventos esportivos e em contrapartida a falta de investimentos em infra-estruturas
ligadas à saúde, educação, saneamento e geração de empregos, e entre outros
fatores importantes ,ajudaram a derrubar a popularidade do governo liderado pelo partido
dos trabalhadores, culminando com o impeachment da presidenta Dilma Roussef em
2016.
Hoje, durante a pandemia do novo
coronavirus e o governo de Jair Bolsonaro, também podemos observar a velha
estratégia de se utilizar o esporte como propaganda na criação de uma falsa normalidade,
com as mesmas estratégias e mecanismos adotados por governos anteriores,
desde Vargas, passando pelos governos da ditadura militar pós 1964 e pelos
governos do PT a partir da década de 2000. Os novos tempos e as velhas políticas em ação.
A partir de agosto de 2020, ainda
quando se observava grande aumento nas curvas de contágios e de mortes pelo
novo coronavirus em todo o país, houve o reinício do campeonato brasileiro de
futebol e também dos campeonatos estaduais, resultado da pressão dos grandes times de futebol e pela própria CBF, e estes por sua vez reproduziam os discursos e as pressões do próprio presidente da República Jair Bolsonaro a favor da reabertura precoce da economia e da volta à "normalidade". Mesmo sem público nos estádios, foram
criados vários protocolos sanitários para evitar o contágio entre atletas e pela
comissão técnica. Mas o que assistimos foram vários episódios de surtos da covid-19 entre
vários times do Brasil, inclusive do Goiás E.C e também do Atlético Goianiense,
ambos times pertencentes à capital goiana. E no último dia 22 de setembro o time com a maior
torcida do Brasil, o famoso Flamengo, testou 27 pessoas contaminadas, entre atletas, comissão técnica e cartolas, em viagem à cidade de Guayaquil no Equador pela disputa da copa
Libertadores da América. O time que mais pressionou as autoridades para o
reinício dos jogos durante a pandemia, tem praticamente quase todo o time e o próprio
técnico contaminados pelo vírus Sars-Cov-2, provando que o reinício do futebol foi uma decisão precoce e insensata, e que não existe
protocolo seguro quando a fase de transmissão do vírus é acelerada e ascendente.
Como se não bastasse, existe hoje
no Brasil uma forte pressão de clubes sobre a CBF no intuito de liberar a participação
de torcedores nos estádios durante a pandemia. Esse movimento também é encabeçado
pelo time do Flamengo, cuja diretoria apoia o presidente da República, exigindo a abertura dos portões e das bilheterias aos
torcedores. O prefeito do Rio de Janeiro, de olho nas eleições municipais de novembro próximo
cedeu à pressão e aprovou a reabertura do Maracanã aos torcedores. Mas com a
revolta de outros dirigentes de clubes importantes que não concordam com a
reabertura apenas do Maracanã, a prefeitura carioca e o Flamengo voltaram
atrás, aos menos por enquanto.
O que está de fato por detrás da
volta do futebol e também das torcidas
nos estádios em pleno aumento de casos na pandemia? Hoje o país
contabiliza cerca de 140 mil mortos pela covid-19 e várias cidades, como
Goiânia, experimentam atualmente o pico de casos e de mortes na pandemia. Essa
chamada necropolítica que promove o genocídio de brasileiros em todos os
estados da federação, representa a tentativa desesperada e pragmática dos governos
do país em criar uma falsa normalidade (alguns denominam de “novo normal”),
onde o esporte e principalmente o futebol pode ser capaz de criar no imaginário
das pessoas a falsa sensação de que a vida voltou a ser como antes, que podemos
sair de casa e trabalhar como se a pandemia já estivesse terminado. Mas é o contrário, a pandemia está em sua fase
mais letal e veloz, ceifando milhares de vidas a cada instante. Uma tentativa
desesperada em querer recuperar as perdas da economia pela pandemia em um país
onde o governo usa o discurso negacionista e se isenta na criação de políticas
públicas de mitigação dos contágios, faz então multiplicarem as tentativas e as
propagandas de um falso normal, onde as pessoas possam voltar logo a consumir e se divertirem
mesmo com um vírus desconhecido, letal e sem controle nas ruas. E o esporte se torna mais uma vez este
instrumento de criação da normalidade impossível, tal qual nas ditaduras da América
Latina ou como os já citados megaeventos dos governos do PT no Brasil.
A grande verdade, todos já sabem,
para se controlar uma pandemia em um país pobre como o Brasil requer grandes
investimentos que garantam a manutenção financeira das famílias de todos os trabalhadores
e dos mais pobres e vulneráveis, também a criação de políticas públicas coordenadas na área
da saúde capazes de promover a testagem em massa, o rastreamento em massa, o isolamento
em massa e o tratamento de todos os contaminados do país, sejam os casos mais graves
ou assintomáticos. Porém, nenhuma destas ações estão sendo colocadas em práticas no Brasil, daí a escolha pelos governantes pelo caminho mais fácil em colocar o trabalhador dentro dos estádios ou em frente da
TV para assistir o seu time do coração em plena pandemia. Neste atalho que estamos trilhando e que se utiliza dos esportes como anestésico para uma população em pânico e à beira de
uma revolta por causa dos prejuízos e do aumento da miséria provocado pela
pandemia poderá levar o país ao abismo de uma pandemia que deverá durar anos e levar a economia aos frangalhos e a saúde pública ao colapso. Essa é a velha estratégia dos governos e do Estado para se criar o
falso normal, porém o desemprego, a fome e a morte não são falsas, mas são muito reais.