quinta-feira, 24 de setembro de 2020

O Falso Normal: os esportes na pandemia

 

Jogador do Flamengo na volta dos jogos no Maracanã sem torcida na pandemia (2020)


 

(Escrito por Renato Coelho)

Sempre governos de diferentes países e em diversas épocas utilizaram os esportes como instrumento ideológico e de manipulação da população. E nestes tempos tenebrosos de pandemia não tem sido diferente. As velhas e demagógicas políticas de controle estão sendo constantemente utilizadas por governos, instituições e também pela grande mídia no sentido de forçar as pessoas a acreditarem que mesmo em um contexto de pandemia, com as curvas ascendentes de mortes e de contágios pelo novo coronavirus no Brasil, que a vida pode simplesmente seguir nos antigos padrões da normalidade social, com viagens, passeios em shoppings centers, finais de semana na praia, matinês no cinema, barzinhos com os amigos, e ainda que à noite podemos em casa torcer pelo time do coração nos campeonatos nacionais transmitidos pela TV. Esse bombardeio constante de propaganda da falsa normalidade atinge a todos e colabora com a necropolítica do Estado brasileiro em transformar a curva exponencial da pandemia no Brasil na mais alta e longa do mundo, sob um platô com uma média móvel de 900 a 1000 mortes diárias. Os números e a matemática ratificam que a vida não segue nada de normal.

O esporte a partir do século XX se transforma em espetáculo midiático e em megaevento de entretenimento de bilhões de espectadores em todo o mundo. O esporte mercadoria se transforma em produto de consumo e é ofertado não mais como exercício físico, promoção de bem estar ou prática de lazer, mas é transformado  tão somente em objeto de contemplação e de fethiche. O sujeito que antes praticava o esporte e também o próprio esporte se transformam em objetos reificados pelo capital. O outrora ativo praticante e desportista do dia a dia  ou aquele torcedor apaixonado pelo seu time e frequentador dos estádios desaparecem no mundo do esporte espetáculo moderno e passam a dar lugar ao consumidor passivo do entretenimento esportes, transformado num mero sujeito inerte e que apenas contempla virtualmente o esporte espetáculo globalizado, que se transformou apenas em uma imagem a ser vendida e consumida. Nessa metamorfose para se enquadrar no processo de fetichização capitalista, o esporte não apenas se transforma em mais uma mercadoria, mas também perde seus significados, seus símbolos, regras e tradições. Nesse processo de mercadorização e de aniquilamento dos sentidos dos esportes, ocorre o empobrecimento e a perda dos seus elementos constitutivos e essenciais que o ligam a estética, a arte, ao popular e à história humana.

Mas o esporte não é hoje uma mercadoria qualquer, mas sim uma mercadoria singular e que movimenta uma cifra de bilhões de dólares no mundo. E além de produzir uma escala astronômica de lucros aos seus patrocinadores, os esportes possuem também um capital político e ideológico incomparáveis. Um exemplo marcante dos esportes como instrumento ideológico foi demonstrado durante o período da chamada Guerra Fria, quando da polarização do mundo entre a antiga União Soviética (ex-URSS) e os EUA, que dividiu o planeta entre países capitalistas  apoiados e liderados pelos EUA e os países do bloco comunista, ligado à antiga União Soviética. Durante este período as olímpiadas se transformaram em palco de disputas hegemônicas entre atletas do mundo capitalista versus atletas do mundo comunista. Nestas disputas, no entanto, o “fair play” nunca existiu, pois eram constantes e comuns os escândalos com doping envolvendo atletas de ambos os lados e que utilizavam esteróides anabolizantes e outros fármacos para alcançarem o pódio e as cobiçadas medalhas olímpicas.

Nos países da América Latina não foi diferente o uso dos esportes por governos e regimes ditatoriais, sempre houveram ações estatais que transformaram os esportes em bandeira de propaganda de representantes políticos ou de partidos. Na Argentina de Perón ao Brasil de Vargas, sempre se soube do grande poder, do fascínio, do êxtase e da admiração provocados pelos esportes, em especial do futebol, sobre a maior parte da população latino americana.

Durante o período das ditaduras militares na América do Sul, houveram casos emblemáticos e históricos onde o Estado se utilizou do esporte para promoção e propaganda de seus ideais e valores autoritários e repressivos, sob o falso manto do triunfalismo, da eficiência, do mérito e da sobrepujança, que são as características principais do esporte. E mais ainda, aqueles que conseguiam alcançar o mérito de serem os mais rápidos, mais velozes e que iam mais alto ou mais longe nos esportes, eram então convocados a se transformarem  em "garotos propaganda" da máquina  de publicidade  oficial do Estado.

A ditadura militar comandada por Jorge Videla na Argentina utilizou a Copa do Mundo de 1978 como propaganda do regime ditatorial para o mundo, tentando esconder as mazelas sociais do país, a pobreza e a violência estatal contra a os opositores ao regime. A Argentina que era sede da Copa do Mundo FIFA de Futebol em 1978 aumenta a violência e a repressão aos opositores no país durante o período da Copa. Enquanto a bola rolava nos gramados argentinos, milhares de pessoas passavam fome nos subúrbios das grandes cidades devido à miséria no país ou eram presas, torturadas e mortas pela polícia argentina.  Mas a propaganda de Videla tentava passar ao mundo a visão de uma outra Argentina, bem diferente daquela que se via nas ruas de Buenos Aires ou nos porões da polícia por todo o país. A propaganda estatal era a Argentina  como sendo o país do futebol  e do triunfo da seleção de Passarela, campeã do mundo em 1978. Mas, para se chegar à final da copa e ao título, o governo Argentino promoveu várias intervenções junto à Fifa e também na escancarada manipulação de jogos que beneficiaram o time anfitrião. Um jogo bastante emblemático foi entre Argentina e Peru durante as semi-finais, onde a seleção Argentina necessitava vencer a equipe adversária peruana com um placar de 4 gols de diferença para avançar à próxima fase, e assim também eliminar a seleção do Brasil daquela Copa. Com visita do general Videla ao vestiário da seleção peruana antes e após o jogo contra a Argentina, o placar final de 6 X 0 a favor da Argentina, fez a mesma avançar à final e disputar o título contra a Holanda.

No Chile, da mesma forma o ditador Augusto Pinochet, passa a promover intervenções e apoiar o Colo Colo, o time mais  famoso e popular da época e que formava a base da seleção chilena. Com o objetivo também de tentar desviar a atenção da população chilena e do mundo das barbáries, atrocidades e genocídios promovidos pela ditadura chilena aos seus opositores, o governo do ditador  Pinochet se utiliza do futebol como instrumento de controle e para mascarar a realidade. O Estádio Nacional do Chile em Santiago se tornou na época em um dos maiores símbolos da cruel ditadura chilena. Este famoso e importante estádio de futebol serviu de local de prisão e tortura para milhares de simpatizantes e apoiadores do governo deposto de Salvador Allende. Milhares de chilenos foram assassinados pela ditadura de Pinochet  dentro do Estádio Nacional do Chile. Um jogo que não aconteceu, mas que entrou para a história do futebol mundial foi nas eliminatórias para a copa do mundo de 1974 na Alemanha, onde a seleção chilena deveria enfrentar a seleção da antiga União Soviética no próprio Estádio Nacional em Santiago, mas o time russo se recusou a entrar em campo em protesto contra a ditadura de Pinochet e então a seleção do Chile entra no estádio sem o time adversário e vence o jogo por W.O, se classificando com o Estádio lotado com mais de 20 mil torcedores, mas que não assistiram a jogo nenhum.

No Brasil podemos citar também vários momentos sobre a utilização dos eventos  esportivos como instrumento ideológico e de manipulação, que vão desde  os governos de Getúlio Vargas, passando pelos militares pós 1964 e indo até os governos atuais.

Um dos episódios mais emblemáticos e marcantes da história do futebol no Brasil, e sobre a  ideologização do maior esporte nacional, ocorreu em 1970 na disputa da Copa do Mundo do México, onde a seleção comandada por Pelé & Cia, considerada a maior seleção de futebol de todos os tempos, se transformou na maior e mais poderosa bandeira de propaganda política da ditadura militar brasileira. Enquanto milhares de brasileiros, que se opunham à ditadura, eram torturados e mortos nos porões das delegacias policiais, o governo exaltava e patrocinava a chamada seleção canarinho que se consagrou tricampeã no México em 1970. A propaganda estatal sobre a seleção de Pelé não somente tentava passar uma boa imagem do Brasil no exterior, assim como também conseguia desviar o foco da população brasileira das questões importantes e ligadas à fome, à miséria , às injustiças sociais e sobretudo com relação à violência e repressão institucionalizada do regime contra os próprios brasileiros. O futebol também ajudou a vender mais tarde a propaganda do “milagre brasileiro” referente ao crescimento artificial da economia e promoveu dentro e fora do país a falsa imagem criada pelos militares do regime caracterizado pelo slogan “Brasil Potência” e “Brasil, País do futuro”.

Nos governos do PT, de Lula e Dilma, (2002-2016) mais uma vez se gastou muita energia e volumosas quantias em dinheiro para transformar o país na sede dos dois  maiores megaeventos  esportivos do planeta, a Copa do Mundo Fifa 2014 e Olimpíadas Rio 2016. O grande êxtase e o entusiasmo em sediar os megaeventos mais importantes do esporte moderno, contribuíram também para desviar o foco e a atenção da população brasileira da sua realidade, camuflando os problemas sociais e servindo de capital politico para o governo. Porém, os gastos astronômicos com a construção das chamadas Arenas de futebol, que ultrapassaram os 30 bilhões de reais (somente o estádio Mané Garrincha em Brasília custou cerca de 1,8 bilhão, e foi considerado na época o estádio mais caro do planeta). Os gastos com as Olímpiadas do Rio em 2016 ultrapassaram os gastos com a copa do mundo de 2014, chegando a cifra de 40 bilhões de reais. Os altos gastos com os megaeventos, as constantes denúncias de corrupções envolvendo os megaeventos esportivos e em contrapartida  a falta de investimentos em infra-estruturas ligadas à saúde, educação, saneamento e geração de empregos, e entre outros fatores importantes ,ajudaram a derrubar a popularidade do governo liderado pelo partido dos trabalhadores, culminando com o impeachment da presidenta Dilma Roussef em 2016.

Hoje, durante a pandemia do novo coronavirus e o governo de Jair Bolsonaro, também podemos observar a velha estratégia de se utilizar o esporte como propaganda na criação de uma falsa normalidade, com as mesmas estratégias e mecanismos adotados por governos anteriores, desde Vargas, passando pelos governos da ditadura militar pós 1964 e pelos governos do PT a partir da década de 2000. Os novos tempos e as velhas políticas em ação.

A partir de agosto de 2020, ainda quando se observava grande aumento nas curvas de contágios e de mortes pelo novo coronavirus em todo o país, houve o reinício do campeonato brasileiro de futebol e também dos campeonatos estaduais, resultado da pressão dos grandes times de futebol e pela própria CBF, e estes por sua vez reproduziam os discursos e as pressões do próprio presidente da República Jair Bolsonaro a favor da reabertura precoce da economia e da volta à "normalidade". Mesmo sem público nos estádios, foram criados vários protocolos sanitários para evitar o contágio entre atletas e pela comissão técnica. Mas o que assistimos foram vários episódios de surtos da covid-19 entre vários times do Brasil, inclusive do Goiás E.C e também do Atlético Goianiense, ambos times pertencentes à capital goiana. E no último dia 22 de setembro o time com a maior torcida do Brasil, o famoso Flamengo, testou 27 pessoas contaminadas, entre atletas, comissão técnica e cartolas, em viagem à cidade de Guayaquil no Equador pela disputa da copa Libertadores da América. O time que mais pressionou as autoridades para o reinício dos jogos durante a pandemia, tem praticamente quase todo o time e o próprio técnico contaminados pelo vírus Sars-Cov-2, provando que o reinício do futebol foi uma decisão precoce e insensata, e que não existe protocolo seguro quando a fase de transmissão do vírus é acelerada e ascendente.

Como se não bastasse, existe hoje no Brasil uma forte pressão de clubes sobre a CBF no intuito de liberar a participação de torcedores nos estádios durante a pandemia. Esse movimento também é encabeçado pelo time do Flamengo, cuja diretoria apoia o presidente da República, exigindo a abertura dos portões e das bilheterias aos torcedores. O prefeito do Rio de Janeiro, de olho nas eleições municipais de novembro próximo cedeu à pressão e aprovou a reabertura do Maracanã aos torcedores. Mas com a revolta de outros dirigentes de clubes importantes que não concordam com a reabertura apenas do Maracanã, a prefeitura carioca e o Flamengo voltaram atrás, aos menos por enquanto.

O que está de fato por detrás da volta do futebol e também das torcidas  nos estádios em pleno aumento de casos na pandemia? Hoje o país contabiliza cerca de 140 mil mortos pela covid-19 e várias cidades, como Goiânia, experimentam atualmente o pico de casos e de mortes na pandemia. Essa chamada necropolítica que promove o genocídio de brasileiros em todos os estados da federação, representa a tentativa desesperada e pragmática dos governos do país em criar uma falsa normalidade (alguns denominam de “novo normal”), onde o esporte e principalmente o futebol pode ser capaz de criar no imaginário das pessoas a falsa sensação de que a vida voltou a ser como antes, que podemos sair de casa e trabalhar como se a pandemia já estivesse terminado.  Mas é o contrário, a pandemia está em sua fase mais letal e veloz, ceifando milhares de vidas a cada instante. Uma tentativa desesperada em querer recuperar as perdas da economia pela pandemia em um país onde o governo usa o discurso negacionista e se isenta na criação de políticas públicas de mitigação dos contágios, faz então multiplicarem as tentativas e as propagandas de um falso normal, onde as pessoas possam voltar logo a consumir e se divertirem mesmo com um vírus desconhecido, letal e sem controle nas ruas. E o esporte se torna mais uma vez este instrumento de criação da normalidade impossível, tal qual nas ditaduras da América Latina ou como os já citados megaeventos dos governos do PT no Brasil.

A grande verdade, todos já sabem, para se controlar uma pandemia em um país pobre como o Brasil requer grandes investimentos que garantam a manutenção financeira das famílias de todos os trabalhadores e dos mais pobres e vulneráveis, também a criação de políticas públicas coordenadas na área da saúde capazes de promover a testagem em massa, o rastreamento em massa, o isolamento em massa e o tratamento de todos os contaminados do país, sejam os casos mais graves ou assintomáticos. Porém, nenhuma destas ações estão sendo colocadas em práticas no Brasil, daí a escolha pelos governantes pelo caminho mais fácil em colocar o trabalhador dentro dos estádios ou em frente da TV para assistir o seu time do coração em plena pandemia. Neste atalho que estamos trilhando e que se utiliza dos esportes como anestésico para uma população em pânico e à beira de uma revolta por causa dos prejuízos e do aumento da miséria provocado pela pandemia poderá levar o país ao abismo de uma pandemia que deverá durar anos e levar a economia aos frangalhos e a saúde pública ao colapso. Essa é a velha estratégia dos governos e do Estado para se criar o falso normal, porém o desemprego, a fome e a morte não são falsas, mas são muito reais.

 

 


sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Os Velhos Desafios da Educação Física e o Novo Coronavirus

 


 Campus UEG - ESEFFEGO (setembro 2020)

 

Neste atual momento de Pandemia, com a descoberta de uma nova e mais contagiosa variante (Ômicron) faz-se necessário e urgente a problematização sobre as práticas em Educação Física, a fim de se tentar   vislumbrar novos caminhos e alternativas para o ensino e aprendizagens dos elementos importantes e fundamentais da cultura corporal num contexto das limitações e da precarização do trabalho e das contradições do chamado Ensino à Distância (EaD), num contexto onde o descontrole do vírus Sars-Cov-2 e suas inúmeras variantes, impõe novos hábitos para a humanidade como a vida em confinamento, lockdown, quarentenas, distanciamentos sociais, uso contínuo de máscaras, testagens e etc. , escancarando e potencializando o crescimento exponencial da miséria, da violência contra mulheres, do racismo, da exclusão digital, da fome e do desemprego.

Mas para entendermos melhor o atual momento da Educação Física e da Pandemia, é necessário sobretudo entendermos e resgatarmos um pouco sobre o percurso histórico da Educação Física desde o seu surgimento na Europa do século XIX, passando pelo novo modelo de reestruturação produtiva, o chamado toyotismo, iniciado nas últimas décadas do século XX e chegando ao atual século XXI, e que historicamente falando, este novo século acaba de ser  inaugurado pela chamada pandemia do novo coronavirus.

 A Educação Física, desde as  suas origens durante o século XIX na Europa, contribuiu para moldar o corpo e a vontade do trabalhador dentro dos preceitos da eugenia e do higienismo. Desde seu surgimento na Europa do século XIX até meados dos século XX, a Educação física era considerada como importante componente curricular das escolas, pois servia como instrumento imprescindível para formação de corpos sadios, úteis, fortes, disciplinados e obedientes, características estas importantíssimas para a reprodução da lógica capitalista no ambiente fabril. Porém, após as mudanças no mundo do trabalho, com a introdução da microeletrônica, da robótica, das tecnologias virtuais, de computadores no sistema de produção, se produziu também a exigência de um novo tipo de trabalhador polivalente, empreendedor e flexível, dentro de uma nova planta fabril horizontal, pautada na qualidade, no desempenho e na captura da subjetividade do próprio trabalhador. Sendo assim, impõe-se uma nova educação do corpo. A educação física então passa a ser secundarizada como componente curricular, dando lugar às disciplinas relacionadas à informática, às linguagens e às matemáticas. A Educação Física vai sendo extinta da escola, assim como a filosofia e a artes, seja na forma de diminuição contínua de sua carga horária ao longo dos anos, seja também na forma mais drástica como a implantação de reformas ou de Políticas Públicas (Lei nº 13.415/2017) por parte do governo federal.

 

O Movimento Ginástico Europeu e o nascimento da Educação Física

 

A Educação Física que surgiu na Europa durante o século XIX, a partir do chamado Movimento Ginástico Europeu era alicerçada sobre os paradigmas eugênicos e higienistas e com a intenção de formar, disciplinar e controlar o corpo dos trabalhadores. Ela se torna o principal instrumento para a formação de corpos fortes, obedientes, disciplinados, úteis e sadios para as fábricas em plena expansão. A falsa promessa da chamada promoção da saúde através dos exercícios ginásticos era realizada sem, no entanto, modificar as condições sociais e sanitárias dos emergentes centros urbanos. A chamada ginástica se torna neste período disciplina obrigatória e também o componente curricular mais importante nas escolas, trazendo para si a  responsabilidade de se transformar no “remédio e na cura” para todas as mazelas sociais. (SOARES, 1997)

A formação de um corpo servil, forte e eficiente se fazia essencial e imprescindível para a própria produção e reprodução do capital urbano-industrial em plena expansão na Europa do século XIX. A ginástica moderna, que posteriormente passará a ser denominada de Educação Física passa então a cumprir e efetivar o seu importante papel como instrumento de controle e adestramento do corpo do trabalhador. Não somente preparar o corpo para o trabalho, mas também o treinamento para a guerra e ainda a formação de um padrão de corpo nacional pautado nos paradigmas eugênicos, na preparação de um “tipo” de corpo de correspondesse à  “beleza” da nação e à “força” do fascismo na  representação do Estado Nacional. (SOARES, 1997)

 

Para se legitimar e ser aceita como componente curricular dentro da escola, a ginástica se apropria dos paradigmas e pressupostos das ciências naturais. As leis da mecânica, da biologia e da fisiologia passam a reger as aulas de ginástica. O corpo cartesiano é então todo “dissecado” e “esmiuçado” pelas ciências positivas e passa a ser compreendido como objeto a ser estudado, medido e analisado sob a luz do saber sistematizado da ciência moderna. Um corpo matemático, econômico, utilitário, com movimentos precisos e controlados é produzido pela ginástica do século XIX, para posteriormente ser totalmente aniquilado, mutilado e subsumido no chão das fábricas europeias.

Ao mesmo tempo em que a física e a fisiologia são incorporadas às aulas de ginástica, os movimentos e a artes circenses também passam a ser apropriados aos conteúdos das aulas, porém de forma diferente, sendo ressignificados e reelaborados com novos sentidos relacionados à racionalização e à mecanização do movimentar humano.

As atividades circenses eram carregadas do lúdico, do improviso, da espontaneidade e do descontrole. Corpos de malabaristas, palhaços, funâmbulos eram considerados subversivos à nova moral da burguesia urbano industrial. O circo com sua característica nômade, representava  o avesso da vigilância, controle e rigidez das fábricas. Corpos livres, criativos e engraçados geravam contraditoriamente espanto, diversão, medo, lágrimas, risos e pânico ao público nas ruas e praças das cidades. Em contrapartida, o capital continuava cada vez mais sedento por corpos subservientes e disciplinados, ao ponto de classificar o circo como atividade marginal, subversiva e ilegal.

A ginástica já incorporada à lógica da produção capitalista e com a importante função de formar e amoldar o corpo do trabalhador à desumana rotina fabril, passa então a incorporar os variados movimentos do circo, porém dando-lhe novos sentidos e significados. O “salto mortal” dos trapezistas passa a ser analisado e explicado sob o olhar da anatomia e da física. A famosa “parada de dois” dos palhaços do circo passa a ser interpretada pela mecânica newtoniana. O equilibrista agora é estudado  a partir  do posicionamento exato do seu centro de massa. Os corpos “bizarros” das mulheres barbadas, dos anões e siamesas são explicados pela biologia e pela genética mendeliana.

Vê-se assim a o surgimento da ginástica ou da Educação Física Moderna em um contexto de preparação do corpo do trabalhador para a produção fabril capitalista durante o século XIX. Era fundamental neste período efervescente do capital a máxima exploração do trabalhador  na extração do mais valor. No entanto, era fundamental também adestrar, controlar e disciplinar este corpo do trabalhador para esta nova fase de exploração do sistema capitalista de produção. Aqui entra em cena a ginástica com o importante papel de sistematizar e racionalizar o uso deste corpo nas fábricas. Moldar e adestrar o corpo para em seguida aniquilá-lo completamente para a produção e manutenção do capital.

Durante o século XIX e até meados do século XX,  a Educação Física Moderna, anteriormente denominada de ginástica, cumpre efetivamente o seu importante papel como instrumento de controle e de disciplina sobre o corpo do trabalhador. Ao se apropriar dos métodos das ciências positivas, a Educação Física se legitima dentro e fora das escolas. A racionalidade dos movimentos, a exatidão dos gestos, as performances precisas, a ergonomia postural e a economia de energia na realização dos movimentos, garantem à Educação Física posição de destaque frente às demais disciplinas do currículo escolar.

A nova reestruturação capitalista (Toyotismo)  e a desestruturação da Educação Física

Já durante o século XX e o pleno desenvolvimento da chamada reestruturação fordista-taylorista, o corpo é ainda capturado e reconfigurado segundo as imposições da produção linear, mecanizada e repetitiva das fábricas e de suas potentes máquinas. Mais uma vez a Educação Física continua com seu importante papel em robotizar braços e pernas dos trabalhadores. A promoção dos corpos fragmentados e dilacerados a se posicionarem servilmente em frente às infinitas esteiras de produção.  A partir deste mesmo século, a Educação Física escolar experimenta um forte processo de esportivização, onde o conteúdo esporte passa a ter grande hegemonia sobre os demais conteúdos da cultura corporal. Entretanto, o esporte também não deixa de cumprir a importante tarefa de promoção do corpo do trabalhador para o trabalho, reproduzindo também nas aulas o discurso de disciplina, saúde e utilidade.

Se torna fundamental a cooptação do trabalhador especializado  nas fábricas, a fim de conformar seu corpo e sua mente a um cotidiano sem sentido, sem prazer e sem descanso. O trabalhador se transforma em “apêndice das máquinas”, se vê obrigado a vender o seu próprio corpo em troca de um mísero salário, capaz de garantir apenas a sua sobrevivência para continuar a trabalhar o dia seguinte. Nos primeiros anos da escola, a Educação Física já se torna a responsável em inculcar no corpo infantil os fundamentos e as bases de um movimento racionalizado, eficiente, rápido e útil ao novo mundo do trabalho composto por máquinas, hierarquias, cronômetros e esteiras. Conteúdos alicerçados em paradigmas higienistas e eugênicos habilitam a educação física para a formação de corpos disciplinados, servis e obedientes, ainda sob a justificativa de proporcionar uma legítima “saúde” aos seus praticantes, e ao mesmo tempo negando as péssimas condições de vida e de miséria da maioria da população brasileira.

As chamadas “crises” ajudam a fortalecer ainda mais o sistema de exploração e que fazem parte, por sua vez, da própria natureza do capitalismo. As reestruturações econômicas e educacionais são também  impostas à sociedade  durante estes períodos de “crises” justamente para manutenção e fortalecimento do próprio capital. Ao final, quem realmente paga a “crise” é sempre o próprio trabalhador com a ampliação das políticas de austeridades fiscais que resultam sempre em cortes de direitos, diminuição de salários e no aumento do desemprego.

Porém, a partir das últimas décadas do século XX, o sistema capitalista entra em uma nova e forte crise provocada pela disparada dos preços do barril de petróleo em todo o mundo, com a estagnação da economia de todos os países capitalistas (“Crise do Petróleo”). Esta crise obriga a uma nova reconfiguração dos processos de produção, ou seja, se inaugura uma nova reestruturação a fim de evitar as quedas dos lucros das empresas e ainda garantir e perpetuar a própria lógica de reprodução capitalista, lançando sobre os ombros dos trabalhadores todos os prejuízos e ônus da crise. A reestruturação capitalista em vigor neste período altera radicalmente a planta das fábricas  e a própria organização e execução do trabalho humano.

O advento de novas e avançadas tecnologias na produção fabril como os robôs, computadores e a internet, e também a nova reconfiguração da arquitetura da produção, não  mais seguindo necessariamente a linearidade das esteiras e nem tão pouco a ultra especialização fordista, mas adotando o desenho em forma de círculos (ciclos de produção) e o trabalho polivalente, obriga assim a formação de um novo tipo de trabalhador capaz de se adaptar à nova realidade da chamada produção em Gestão de Qualidade Total ou Toyotista.

Dentro desta nova realidade produzida pela reconfiguração toyotista, este novo trabalhador passa a assumir novas características adequadas à reestruturação imposta pelas mudanças na configuração e morfologia fabril. A polivalência do trabalhador passa a ser uma das novas exigências do trabalho flexível, alterando drasticamente o modelo fordista de trabalhador ultra-especializado. A chamada polivalência do trabalhador implica na apropriação de novas competências, que são saberes relacionados à produtividade, à competitividade e à qualidade da produção de mercadorias, com o objetivo primordial de manter a hegemonia do capital na produção. Um trabalhador polivalente é aquele capaz de operar de forma simultânea várias máquinas e ainda acessar várias tecnologias ao mesmo tempo, sendo ainda capaz de renovar continuamente seus conhecimentos em prol da valorização do capital.

Estas novas exigências também chamadas de “competências” se caracterizam pelo conhecimento de novas linguagens, informática, protocolos de gestão, matemática e microeletrônica. A imposição destas novas competências ao trabalhador se relaciona também com o processo de globalização dos mercados mundiais e particularmente também com a recente revolução tecnológica representada pela internet e a nanotecnologia. As novas competências adquiridas pelo trabalhador flexível toyotista não se referem à apropriação de um conhecimento profundo capaz de levá-lo a autonomia, mas diz respeito basicamente a um saber superficial e pragmático, capaz de qualificar minimamente e momentaneamente o trabalhador, adequando-o aos modismos e ao pragmatismo do mercado.

Uma das principais características da ideologia toyotista é a captura da subjetividade do trabalhador, estando corpo e mente integrados e subsumidos à produção capitalista. O consentimento operário e a cooptação do trabalhador formam a chave para o controle e a super-exploração da classe trabalhadora e ainda para a otimização da produção. O pensamento, a postura e toda subjetividade humana são de forma coercitiva e violenta canalizadas para cooperarem com a reprodução do capital, auxiliando e colaborando para o melhor funcionamento e na maior lucratividade da fábrica ou empresa. A alma, o consciente, o inconsciente, a imaginação e o próprio tempo de sono do trabalhador são obrigados a se sujeitarem e a participarem integralmente da produção do mais valor.

A cada reestruturação produtiva do capital exige-se a formação de um novo tipo de trabalhador, logo a educação em geral, que no sistema capitalista de produção tem a função de formação de mão de obra barata que atenda as exigências do mercado, irá de pronto sofrer também a sua própria reestruturação através de reformas curriculares, construção de parâmetros curriculares nacionais, aligeiramento dos conteúdos, fragmentação das disciplinas e também na criação e extinção de cursos. A reestruturação da educação sempre vai a reboque da reestruturação do mercado. Enquanto as fábricas e as empresas passam a exigir um novo tipo de trabalhador polivalente, flexível, altamente precarizado, eficiente e submisso, a educação institucional em contrapartida, cumprirá o seu fiel papel de formar e equipar o trabalhador com estas novas demandas e características, mesmo sendo para um mercado altamente precarizado e caracterizado pelo desemprego estrutural. As contínuas reformas curriculares permitem a efetivação das adequações necessárias para formação  e capacitação do trabalhador, de forma a impor-lhe a entrada no mercado flexível, instável e precarizado. Estas constantes e contínuas mudanças curriculares, que vão desde a educação básica aos cursos universitários de graduação e de pós-graduação, evidenciam a estreita correlação entre educação e mercado dentro da sociedade capitalista, ratificando a sua “nobre” função em formar mão de obra barata para o trabalho precário, o subemprego e para o desemprego estrutural.

Percebe-se assim, que diante das novas investidas do capital globalizado sobre a educação, ocorre uma total reconfiguração de disciplinas e de conteúdos,  seja dentro da escola ou nas próprias universidades. Diante das  novas demandas e exigências do mercado vão sendo criados novos saberes e disciplinas dentro das matrizes curriculares que convergem basicamente para a formação das chamadas novas competências do trabalhador flexível, como a inclusão de informática, matemática financeira, línguas estrangeiras no ensino médio, e em paralelo outros conteúdos clássicos ou mesmo componentes curriculares importantes vão sendo completamente extintos ou tendo a sua carga horária subtraída ao máximo, como foram o caso das disciplinas de Educação Física, Artes, Filosofia, História e Geografia.

 Dentro do novo contexto da chamada reestruturação produtiva do toyotismo se privilegiaram as disciplinas estritamente voltadas às demandas imediatas do mercado globalizado, como as linguagens, as matemáticas e a informática. Aqueles outros saberes e conhecimentos tradicionais que não atendiam diretamente a esta nova formação pragmática, empreendedora, flexível e polivalente se tornam secundarizados e totalmente descartáveis dentro dos novos currículos construídos e adequados à esta nova formação do trabalhador. Como exemplo atual se destaca a própria disciplina de Educação Física, e ainda as Artes, Geografia, História e a Filosofia. Estas disciplinas vem sofrendo ao longo dos últimos anos a diminuição de suas cargas horárias nas escolas diante da  implementação das políticas públicas educacionais de origens neoliberais, na forma de parâmetros curriculares nacionais e as consequentes mudanças nas matrizes curriculares tanto nas escolas quanto nas universidades.  Ressalta-se ainda a própria exclusão total destas disciplinas nos currículos escolares, pois não atendem às características exigidas na formação do novo tipo de trabalhador flexível, polivalente, servil e útil do século XXI. O interesse do mercado flexível de cariz toytista é um trabalhador altamente submisso, dócil, servil e alienado, que colabore pró-ativamente na produção do mais valor, cooperando para a reprodução do capital e para a própria exploração e aniquilamento do trabalhador. Sob o olhar do capital, não é importante o conhecimento da história, dos saberes filosóficos, das produções artísticas ou a aprendizagem da cultura corporal, pois todos estes conteúdos, na ótica do capital, oneram e produzem mais gastos para a educação formal, além de demandar também mais tempo para a preparação do trabalhador, tendo a máxima capitalista: “Tempo é dinheiro”. E além de tudo, quanto mais alienado o trabalhador, melhor será o controle e mais efetiva a sua exploração.

A ênfase que se tinha na formação do trabalhador fabril do século XIX e posteriormente na organização fordista do século XX com características de formação de um corpo forte, disciplinado, obediente e saudável vai perdendo força para a formação de um corpo de novo tipo, ou seja, pró-ativo, polivalente e  para o desempenho. As novas exigências agora passam a ser uma atitude cooperativa, pensamento colaborativo com a produção, operar plataformas virtuais, apertar botões e vigiar as máquinas robotizadas. Secundarizando assim aquela antiga Educação Física de outrora, ligada à aptidão física e ao paradigma do corpo forte, saudável e disciplinado.

A disciplina de Educação Física, assim como as demais já citadas, sofreram ao longo das primeiras décadas deste século as consequências deste rápido processo de esvaziamento de conteúdos e da multiplicação dos chamados “currículos mínimos”, que foram construídos em larga escala, principalmente na época da ditadura militar brasileira, mas que voltam à cena neste atual século XXI, período marcado pela precarização da vida e de barbárie no trabalho. Porém, a Educação Física sofre também outros ataques, como por exemplo, a mercantilização do corpo através da indústria do fitness, através da promoção da ditadura da beleza e do culto ao corpo como formas de ampliação do mercado do mundo fitness/welness, utilizando-se da privatização das práticas corporais nas formas de mega academias de ginástica. Assim sendo, as práticas corporais dentro das aulas de Educação Física na escola vão sendo deslocadas para o campo não escolar, ou seja, para o mercado privado e excludente das academias de ginástica, que até então, experimentavam um período de grande expansão em todo o mundo antes de iniciar a pandemia do novo coronavirus.

 

Os velhos desafios da Educação Física e o novo coronavirus

 

A pandemia do novo coronavirus não somente descortina os velhos problemas e desafios da educação física, mas também potencializam essas nossas mazelas de forma exponencial. Aumentaram os problemas relacionados ao chamado Ensino à Distância (EaD), que impossibilita a práxis pedagógica das atividades relacionadas à cultura corporal, através das limitações e da precariedade das plataformas digitais de mediação de aulas, e em paralelo fez explodir um problema que já existia antes da pandemia, ou seja, a exclusão digital de milhões de estudantes que ficaram sem acesso às chamadas aulas on-line. Não somente isso, mas as aulas de educação física eram sempre planejadas e executadas com prioridade aos contatos e se realizavam normalmente em aglomerações humanas. É fato porém, que não existem aulas de futebol, basquete, voleibol, natação, dança, ginástica sem os centenas de milhares de contatos entre alunos. Aglomerações e contatos são essenciais em aulas de educação física. Não é à toa ou mera coincidência que as aulas de educação física são as preferidas de crianças e adolescentes nas escolas brasileiras. Os contatos e aglomerações são as marcas mais importantes da humanidade. Sem os contatos físicos e as aglomerações sociais não existiriam a história e nem a vida humana na Terra. O grande dilema não diz respeito apenas à realização do distanciamento social, que é fundamental e necessário para a diminuição de contágios e consequentemente de mortes pelo vírus Sars-Cov-2, mas sim pelo total descontrole e tragédia que vem se configurando a  pandemia no Brasil. Países que conseguiram conter a pandemia durante o ano de 2020, mas que atualmente em 2022, enfrentam as chamadas terceiras e quartas ondas mais intensas do que aquelas. As vacinas tem cumprido bem o seu papel, porém, somente ações farmacológicas ou regras de biossegurança aplicadas de forma isoladas tem se mostrado ineficazes no combate às altas transmissões virais. 

Os problemas atuais não dizem respeito apenas à educação física ou à educação brasileira em geral, este problema atual do descontrole da pandemia se tornou um problema mundial, que correlaciona saúde, educação, economia, cultura, política, ecologia e a vida de mais de bilhões de pessoas que moram em países pobres como o Brasil, e que estão em grande risco, neste atual contexto de pandemia do vírus Sars-Cov-2.

A discussão atual não deve jamais ser sobre quais os melhores critérios de biossegurança para a realização de aulas de educação física, matemática ou de geografia. A grande questão é a total impossibilidade de reinício de qualquer atividade escolar no momento em que a maioria das crianças e adolescentes ainda não foram vacinados. Segundo os dados apresentados pelo próprio Ministério da Saúde (www.saude.gov.br), os óbitos por covid-19 entre crianças representam 0,4% do total de mortes, ou seja, mais de 2.500 crianças e adolescentes já perderam a vida na pandemia, este que é um dos maiores índices de mortalidade infantil por covid-19 em todo o mundo. Tais números cresceram no ano de 2021 quando iniciou a maior flexibilização das atividades econômicas e principalmente com a abertura das escolas e creches em todo o Brasil.  O reinício das aulas, sem a vacinação de crianças e adolescentes pode ajudar também a iniciar uma nova terceira onda de contaminações, como ocorre hoje em grande parte dos países europeus.

Repensar sobre o futuro da educação física não se resume apenas em definir ou escolher os protocolos mais seguros e eficazes para a realização das atividades, mas é levar o debate muito além disso, é refletir também sobre a precarização e sucateamento das escolas públicas, onde muitas não possuem água nos banheiros para lavagem das mãos, é discutir sobre o processo de exclusão digital que faz aumentar ainda mais o abismo entre ricos e pobres, é discutir sobre a saúde emocional e física das crianças em isolamento social, debater também sobre o desemprego e a fome que atinge milhões de famílias em todo o país.

Sabemos que atualmente uma voraz e rápida terceira onda de contágios avança sobre países de diversas regiões do planeta, mesmo em países com a cobertura vacinal bastante adiantada, como Portugal, Espanha, Alemanha, e que tomaram as medidas corretas no seu devido tempo, porém, os índices de contágios (não de óbitos graças às vacinas) voltaram a subir de forma drástica e descontrolada nestas mesmas regiões, provando que o vírus é muito mais perigoso do que se imaginava. Entretanto, estes países, além de terem reduzido o número de óbitos e de contágios durante o primeiro semestre deste ano, conseguiram ganhar mais tempo para lidarem com a pandemia, preparando melhor o sistema de saúde, entendendo a complexidade do comportamento do vírus e os procedimentos mais adequados de tratamento aos infectados. 

Sendo assim, fica claro que não se deve abrir escolas sem a vacinação das crianças e adolescentes em Goiás. Os números, mesmo sendo subnotificados, apontam que os contágios ainda estão totalmente fora de controle na capital e cidades do interior de Goiás. A questão não é qual o protocolo de segurança mais seguro e adequado que se deve construir para um projeto de aulas de educação física, mas sim promover a abertura das creches e escolas com o reinício das aulas somente após a vacinação completa de crianças e adolescentes.

Segundo os critérios criados pela própria OMS (Organização Mundial de Saúde) e que podem nortear a abertura de escolas são: o primeiro critério, segundo a OMS, diz que a cidade ou região deve possuir um sistema de saúde capaz de identificar, testar, isolar, rastrear todos os contatos e tratar as pessoas infectadas. O segundo critério é a garantia de que os locais de trabalho e os demais ambientes  frequentados por todas as pessoas sejam locais seguros  contra os contágios. O terceiro critério diz respeito a adoção de barreiras sanitárias para atender os casos de pessoas já contaminadas e cuja origem seja de fora da cidade ou do país (casos importados). O quarto critério é o controle de eventuais surtos em locais estratégicos como hospitais e casas de repouso. O quinto critério é a adoção de medidas preventivas para a conscientização da população com relação à pandemia e suas formas de contágio. O sexto e último critério sugere que a reabertura e flexibilização das atividades econômicas, sociais e culturais  devem ocorrer somente quando as taxas de contágios estiverem em queda, ou seja, somente quando a pandemia estiver controlada.

Duas regras importantes para a flexibilização das atividades e que não foram listadas pela OMS é a adoção de políticas econômicas robustas de fomento para as empresas e para todos os trabalhadores de atividades não essenciais que foram obrigados a participarem do isolamento social, e ainda a cobertura vacinal completa (>90% da população).

Assim sendo, vemos que em Goiás e em Goiânia, os governos não adotaram e continuam  não adotando de forma integrada nenhuma dessas medidas para a reabertura. O que presenciamos são flexibilizações precoces e aligeiradas que são os grandes responsáveis pelo número exagerado de contágios e mortes. E os professores de Educação Física e todos os demais trabalhadores em geral, estão arriscando as suas próprias vidas para a manutenção diária de suas necessidades materiais e financeiras, porque não existe no Brasil nenhuma ação coordenada para a promoção do controle da pandemia por parte dos governos (Municipal, Estadual e Federal), e somente priorizar o programa de vacinação será uma ação insuficiente frente à complexidade da pandemia e de suas consequências. 

As academias do Brasil já estão funcionando na maioria das cidades e capitais do país e foram criados diferentes  protocolos de saúde e segurança em vários estados para evitar o contágio entre os frequentadores destes estabelecimentos comerciais, como uso de máscaras, tapetes sanitizantes, álcool em gel, distanciamento entre os equipamentos, criação de horários alternativos e de forma escalonada. Porém, o que se observa em muitas academias de Goiânia é o total descumprimento destes protocolos sanitários. Também em conversas e entrevistas com professores de educação física que trabalham em academias, há relatos de muito estresse e apreensão pelo medo do contágio, pela sobrecarga de trabalho, desvio de funções quando professores tem que medir a temperatura de alunos na entrada da academia, grande número de alunos por turmas, que impossibilita o distanciamento social, alunos com a máscara no queixo e etc. A arquitetura da maioria das academias, que não permite a circulação natural do ar, e as intensas atividades aeróbicas e anaeróbicas realizadas pelos alunos no seu interior, infelizmente tornam as academias de ginástica os locais mais propícios para o contágio pelo vírus Sars-Cov-2. Haja visto que uso de termômetros para medição de temperatura corporal e tapetes sanitizantes são totalmente inócuos para combate da Covid-19, o que de fato protege contra os contágios são o uso adequado das máscaras, o distanciamento social seguro e a vacinação, destacando que as vacinas evitam casos graves e mortes, sendo que está também comprovado que pessoas vacinadas transmitem menos o vírus do que as não vacinadas.

Todas essas questões devem ser debatidas e levadas em consideração, evitando cair naquela vela armadilha da falsa dicotomia “Saúde X Economia”. O que se coloca na mesa é a realidade de um país que não possui nenhuma política pública nacional, coordenada e integrada no combate ao covid-19 e que atualmente aposta erroneamente apenas na vacinação, como a única arma de combate à pandemia. Ou fazemos esse debate hoje ou seremos cúmplices das necropoliticas praticada pelo Estado Brasileiro no atual contexto da pandemia do novo coronavírus. E essa discussão não deve se circunscrever apenas ao debate educacional, mas ao engajamento político em prol das milhares de vidas de brasileiros que estão sendo abreviadas pelo atual modelo de mundo em que vivemos, caracterizado essencialmente pela exploração do homem pelo homem e pela destruição insaciável da natureza. O que está em jogo é a nossa própria sobrevivência como seres humanos nas circunstâncias da barbárie atual.

 

 

 

                 

Bibliografia

 

BRASIL. Lei nº13.415 de 16 de fevereiro de 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13415.htm. Acesso em: 10 de maio. de2017.

______. Medida Provisória nº 746 de 22 de setembro de 2016. Disponível em : http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=48601-mp-746-ensino-medio-link-pdf&category_slug=setembro-2016-pdf&Itemid=30192 . Acesso em: 10 de maio de 2017

NOZAKI, H.T. O Mundo do Trabalho e o Reordenamento da Educação Física Brasileira. Revista da Educação Física UEM. v. 10 n. 01,n p. 3-12 1999.

SOARES, C.L. Imagens do Corpo “Educado”: um olhar sobre a ginástica no século XIX. In: FERREIRA NETO, A. Pesquisa Histórica em Educação Física. Vitória: CEFD/UFES, 1997.

 

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Escola e Pandemia: fechar para salvar

 


Reabertura das escolas públicas em Manaus durante a Pandemia

Conceitualmente escola é ambiente natural de aglomerações, seja dentro das salas de aula, no recreio, nas quadras, na sala de professores, na cantina, nos corredores, no pátio, nos laboratórios, nos banheiros, no portão e na entrada e na saída. Fisicamente, a própria arquitetura das escolas é projetada para satisfazer espaços para as aglomerações. Além de aglomerações, as escolas tradicionalmente são concebidas para funcionarem como locais de intensos e contínuos contatos, sejam nas brincadeiras no horário do recreio, nas aulas de educação física, nas conversas dentro e fora das salas de aula. Existem múltiplas relações de interatividade no ambiente escolar, as interações entre os próprios alunos, as relações entre alunos e professores, professores e funcionários, funcionários e alunos, funcionários e funcionários, professores e professores. Além de todas essas interações pode-se acrescentar também a interação de todos os sujeitos citados com os pais ou familiares dos alunos. Sem esse universo infinito de interatividade humana não existiria a escola. Escola não pode ser vista apenas como depósito de crianças ou lugar de preparação para o mercado de trabalho. A escola é muito mais do que um espaço de aprendizagem de conteúdos e saberes, é um universo de sociabilidade e humanização. É na escola que as crianças aprendem muito mais do que gramática ou álgebra, geografia ou biologia, é onde as crianças aprendem a conviver em sociedade, descobrem o mundo, amadurecem e interagem com as diferenças. A pandemia do novo coronavirus obrigou o fechamento de todas as escolas no Brasil a fim de se evitar a proliferação e o aumento de contágios pelo vírus Sars-Cov-2. Porém, o que mais parece fazer falta não são os meros conteúdos, as aulas ou as disciplinas curriculares, mas sobretudo essa gama de interações e descobertas que são construídas e apropriadas no interior do espaço escolar. Na escola as crianças descobrem também as várias formas de preconceitos, o racismo, o machismo, a burocracia, a disciplina, o tempo do relógio, o bullying, a meritocracia, as paixões, as reprovações e as variadas formas de poder e de violência institucional. Na escola não existe a liberdade e o descontrole das ruas, nela tudo é controlado e cronometrado, assim como nas fábricas. As crianças aprendem na escola e fora da escola. Porém, na escola existe um saber sistematizado e científico, que é transmitido como legado e herança das gerações e tradições passadas. A escola é um universo complexo e singular. Os relacionamentos nascem, multiplicam e também são ressignificados nas interações escolares, mesmo num sistema educacional marcado pela burocratização, pela hierarquia institucional e violência simbólica, que são as marcas distintivas das escolas na modernidade. 

O fechamento das escolas em todo o Brasil, a partir de março, foi uma decisão necessária e acertada dentro do atual momento de pandemia do novo coronavirus. O governo do Distrito Federal foi o primeiro a decretar o fechamento de todas as  creches, escolas e universidades das redes públicas e privadas no dia 11 de março de 2020 (contraditoriamente o governador Ibaneis Rocha do DF no dia 29 de junho promove a reabertura sem restrições e diz que vai passar a tratar a Covid-19 apenas como uma gripe). Porém, não podemos deixar de destacar que o atual contexto de pandemia está sendo um momento turbulento e traumático para alunos, professores e também para as famílias dos estudantes em geral. Temos observado durante a pandemia que as escolas foram as primeiras instituições a serem fechadas quando do início das chamadas transmissões comunitárias no país, e com certeza deverão ser as últimas a retornarem com as atividades normais. Quando se fala em escola, se fala em intensas aglomerações. As aglomerações e os contatos nas escolas não envolvem apenas o espaço geográfico onde se situam as escolas. A logística de levar o filho para a escola envolve deslocamentos urbanos na forma de transportes públicos (ônibus, trens, bicicletas, carros ou a pé). O início do ano letivo nas escolas mobiliza centenas de milhares de pessoas relacionadas direta ou indiretamente ao pleno funcionamento das escolas. Existe uma correlação direta entre a dinâmica escolar e o aumento do fluxo nas vias urbanas como avenidas, ruas, rodovias e calçadas. Basta lembrarmos do período de férias escolares o quanto o trânsito fica menos caótico e os ônibus e terminais mais vazios do que em períodos normais de aulas escolares. A abertura das escolas implica no aumento da mobilidade urbana e consequentemente de maiores contatos e aglomerações em todas as áreas urbanas do país.

Escola de educação infantil reabre na Europa durante a pandemia


Segundo estudos epidemiológicos, a curva de crescimento exponencial de contágios e mortes no Brasil estaria mais acentuada e acelerada caso não houvesse o fechamento das escolas ainda em março de 2020. A grande discussão atual é justamente sobre o tempo para se reabrirem as escolas e poder assim dar continuidade ao ano letivo. Mas a grande e mais importante discussão não deveria ser essa sobre o retorno presencial das aulas escolares, mas sim sobre as formas urgentes e eficazes de controle da pandemia através de testagem em massa, isolamento, rastreamento e tratamento dos casos positivados da covid-19. Os números da pandemia demonstram que ainda não é a hora de abrirmos escolas públicas no Brasil. E não é à toa que atualmente esse debate toma lugar de destaque principalmente na mídia e nas redes sociais. Um forte fator de pressão que pesa sobre a retomada das atividades escolares é com relação a já iniciada reabertura precoce das atividades econômicas e do comércio em todo o país, que  por sua vez acaba provocando a necessidade das mães trabalharem, e sendo assim, não tem onde deixarem seus filhos durante o período laboral, já que numa sociedade patriarcal e machista como a brasileira, cabe sempre à mulher o papel de cuidadora dos filhos e de todas as atividades domésticas. Aqui surge a pressão oriunda dos grandes grupos econômicos e da grande mídia em geral para a reabertura das escolas, sob um olhar de escola como sendo um mero lugar de depósito de crianças e de preparação para o mercado de trabalho. Porém, a reabertura de escolas deve seguir rigorosos critérios científicos de segurança sanitária e que por sua vez envolvem vários quesitos e protocolos especiais. 

Em primeiro lugar, para se abrirem as escolas na atual conjuntura brasileira, a pandemia deve estar controlada nos estados e municípios onde estas se localizam, ou seja, as autoridades locais necessitam saber com precisão onde se encontra o vírus, e isso implica na realização de testagem em massa de toda a população, isolamento dos casos positivos e o rastreamento de todos os contatos para se ter certeza da quebra da cadeia de contágios do vírus naquelas regiões. As escolas não são ilhas, se o vírus está fora de controle no país, obviamente também estará descontrolado dentro das escolas. Ter o controle da pandemia significa saber onde está o vírus, quais são os cluster e onde se localizam os principais surtos de contágios locais. O chamado índice de transmissão do vírus deve estar abaixo de 1 (Ro < 1), e isso significa que os contágios estão decrescendo ao longo do tempo e que a pandemia não está fora de controle. Não basta criar critérios rigorosos e protocolos sanitários de segurança apenas dentro das escolas como uso de máscaras, álcool em gel, tapetes sanitizantes ou distanciamento social, é necessário estudar o comportamento da pandemia nos bairros, cidades e no país onde se situa a escola a fim de proteger a vida dos alunos, professores, funcionários e de seus familiares. Avaliando a dinâmica da pandemia no Brasil atual, constatamos a falta de políticas públicas coordenadas no combate ao novo coronavírus, a baixa testagem da população, a precarização e sucateamento das escolas, a falta de repasses de recursos para aquisição e instalação de equipamentos de higiene nas escolas, e ainda o planejamento inadequado, o despreparo e a burocratização excessiva das secretarias de educação frente à pandemia do vírus Sars-Cov-2, formam os ingredientes necessários para a manutenção e continuidade do fechamento total das escolas.

Sala de aula com crianças na Europa durante a pandemia


Pesquisas demonstram que grande parte dos professores das escolas públicas são considerados pertencentes ao chamado grupo de risco, também existe um percentual importante de alunos nas escolas públicas com comorbidades e que os tornam mais vulneráveis à covid-19. Além disso, deve-se destacar que culturalmente no Brasil existe uma grande parcela de crianças em idade escolar que vive na mesma casa com familiares idosos ou do grupo de risco (principalmente com avós), o que poderia transformar essas crianças escolares em potenciais transmissoras do vírus Sars-Cov-2 para os seus próprios familiares. Sendo assim, no caso do Brasil não é recomendável ou aconselhável, com base na ciência, a reabertura de escolas públicas ainda em 2020 para realização de aulas presenciais, pois corre-se um grande risco de se criar a chamada segunda onda de contágios, onde milhões de pessoas que se mantiveram isoladas até aqui, e que por isso permanecem sem imunidade, passariam a entrar em contato direto com o vírus, ocasionando uma nova exponencial de contágios e óbitos em todo o país de forma avassaladora.

Apesar de crianças e adolescentes não serem considerados grupos vulneráveis ou de risco, no Brasil, segundo dados do próprio Ministério da Saúde (www.covid.saude.gov.br) já foram confirmadas até maio de 2020, mais de 130 mortes entre crianças e adolescentes, colocando o país em primeiro lugar no ranking de mortes na faixa etária de 0 a 19 anos por causa da covid-19. Além das mortes de crianças, foi constatado até o mês de agosto de 2020 a chamada Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P) em mais de 197 crianças em todo o país. A SIM-P é uma doença inflamatória relacionada à Covid-19 em crianças, e que pode provocar semanas após a infecção pelo vírus, manchas e irritações na pele, febre alta, alterações cardiovasculares, renais, respiratórias, hematológicas e vários outros sintomas também potencialmente graves.

Atividades ao ar livre em escola europeia com crianças durante a pandemia


Tivemos no mundo várias experiências fracassadas de países que tomaram a decisão de abrirem as escolas durante a pandemia, como a França, Coréia do Sul, entre outros, mas tiveram que retroceder e fechar vários estabelecimentos escolares por causa de surtos de contágios pelo novo coronavirus entre alunos, professores e funcionários das escolas. O caso mais  emblemático de fracasso total de abertura das escolas em meio à pandemia é o de Israel. No início do pandemia Israel era tido como modelo no combate e controle do novo coronavirus, com baixa transmissão, isolamento social e testagem em massa da população. O governo de Israel em meados de maio resolve então flexibilizar de forma precoce e aligeirada o comércio e ao mesmo tempo promoveu a reabertura das escolas judaicas, desconsiderando que a taxa de transmissão no país ainda estava superior a 1 ( Ro>1 ) e que o verão na palestina seria muito quente a ponto de obrigarem tanto alunos quanto professores a fecharem as salas de aula  para o acionamento do ar-condicionado. Tudo isso foi o suficiente para o surgimento de vários surtos nas escolas e nas cidades israelenses, e contribuiu para o aumento descontrolado do vírus em proporções catastróficas como demonstram os números da pandemia hoje em Israel.

Surto de Sars-Cov-2 em escolas de Israel


Casos semelhantes ao de Israel também ocorreram em países como a França, onde o governo mudou de postura com relação à reabertura das escolas no primeiro semestre de 2020.

No Brasil temos também o caso emblemático de abertura precoce de escolas públicas  na cidade de Manaus, capital do Amazonas que experimentou taxas elevadíssimas de contágios e de mortes, chegando a atingir a chamada imunidade coletiva, que provocou a desaceleração natural da pandemia de forma catastrófica e desumana, com milhares de mortes, colapso de hospitais e de cemitérios. Manaus sofreu as mesmas consequências da pandemia que atingiu o a região norte industrializada da Itália, que também demorou muito a fechar as atividades de suas fábricas. O fechamento tardio das atividades do pólo industrial de Manaus, onde fica instalada a chamada Zona Franca de Manaus, foi um dos principais potencializadores do cresciento veloz da pandemia na cidade de Manaus e no estado do Amazonas.

No dia 10 de agosto foram reiniciadas as aulas presenciais na cidade de Manaus, localizada na Região Norte do Brasil, a capital que foi a mais atingida pela pandemia no Brasil, com números exagerados de mortos pela escassez de recursos médicos e pela falta de atendimento hospitalar. A abertura das 123 escolas na capital do Amazonas com cerca de 110 mil estudantes, se deu sem o diálogo ou consulta aos professores, alunos e pais de alunos. Na semana que antecedeu a abertura das escolas houveram protestos, ameaças de greves e manifestações de professores que eram contrários à reabertura das escolas em agosto. Muitos preferiam manter as aulas no sistema remoto, porém a Secretaria de Educação Estadual adotou o sistema híbrido com aulas remotas e presenciais, de forma escalonada com 50% das turmas separadas em cada dia. Mesmo adotando medidas de segurança e protocolos sanitários como disponibilidade de álcool gel, máscaras, tapetes sanitizantes, pias com água e sabão e recomendações para adoção do distanciamento social, segundo o sindicato dos professores que representam os docentes da rede pública de Manaus (ASPROM SINDICAL), vários professores e estudantes testaram positivo para a covid-19 em menos de um mês após o retorno das aulas e várias escolas foram fechadas por motivos de novos surtos de contágios pelo novo coronavirus entre alunos, professores e funcionários. E o mais agravante de tudo é que as estatísticas apontam que a partir de agosto os casos de contágios e de óbitos em Manaus e no Amazonas vem subindo novamente, indicando uma provável segunda onda e talvez da mesma forma como aconteceu em Israel, possa ter uma relação direta com a abertura prematura das escolas e o retorno dos alunos às aulas presenciais.

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Escolas em Tempos de Pandemia: o EaD e a Precarização do Trabalho Docente


(Escrito por Renato Coelho)

A fim de compreendermos o atual processo de intensificação do trabalho docente e o aumento acelerado da precarização do trabalho nas escolas (públicas e privadas) em Goiás durante a pandemia, faz-se antes necessário entender o contexto e a dinâmica da inclusão do Ensino à Distância nas escolas e também destacar a real situação dos professores diante das limitações e complexidades de um novo modelo de ensino mediado por tecnologias virtuais, cuja implantação fora necessária no contexto de pandemia, porém, imposta de forma unilateral, burocrática e sem consulta ou diálogo com alunos, professores e as famílias envolvidas no processo.

No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) elevou o estágio de contaminação pelo novo coronavírus à pandemia. A chamada pandemia de covid-19, segundo especialistas da área da saúde, foi deflagrada de forma tardia pela OMS por questões geopolíticas e por pressão de interesses econômicos, tal atraso provocou consequências catastróficas e irreparáveis no mundo todo, haja visto a rapidez de propagação e letalidade do vírus Sars-Cov-2. Em menos de três meses o vírus foi capaz de dar a volta ao mundo e atingir a todos os países do planeta. A intensa movimentação de pessoas e de mercadorias em um mundo globalizado ajudaram a acelerar o processo de propagação, potencializado ainda mais por posturas negacionistas de governantes e gestores de vários países. A proliferação de uma doença pulmonar causada por um vírus desconhecido tem atingido e impactado sobremaneira e de forma mais violenta países e regiões pobres, onde a falta de assistência médica e a miséria  se tornam obstáculos e barreiras para o enfrentamento eficaz contra a pandemia.

Em Goiás, o governo estadual, através do Decreto n. 9633 de 13 de março de 2020 determinou a situação de emergência em Saúde Pública do Estado de Goiás em razão da pandemia do novo coronavirus, e entre as várias medidas contidas no decreto estadual havia a obrigatoriedade de fechamento de todo o setor produtivo e também a paralisação de todas as instituições educacionais na forma presencial a partir do dia 18 de março de 2020, ou seja, creches, escolas e universidades, públicas ou privadas, deveriam suspender todas as atividades presenciais na data prevista. Em seguida, todos os municípios do estado também emitiram decretos similares regulamentando as ações de enfrentamento à pandemia no âmbito local, paralisando as atividades educacionais presencias de forma em geral. E no dia 15 de março o Supremo Tribunal Federal, através de sessão em vídeo conferência, delega aos governos estaduais e governos municipais o poder e a autonomia para criação de medidas de controle sobre as regras de isolamento social, cabendo ao governo federal a coordenação nacional sobre o combate ao novo coronavirus e o repasse de verbas.

Ainda no dia 15 de março a Secretaria Estadual de Saúde (SES-GO) publica a nota técnica n.1-2020, que recomendava também o fechamento de todas as instituições educacionais por 15 dias, em virtude da pandemia do novo coronavírus. Já o Conselho Estadual de Educação (CEE-GO) através do seu parecer 02-2020 autoriza o regime especial de aulas remotas (EaD) em substituição às aulas presenciais em todo o sistema educativo do Estado de Goiás. A partir de então, o sistema de aulas virtuais e à distância surge como modelo emergencial e necessário para continuidade das atividades pedagógicas de escolas e universidades em todo o Estado de Goiás.

Todos os professores, alunos e pais de alunos tiveram que se adaptarem ao novo formato de aulas remotas que passou a ser implementado de forma provisória, emergencial e aligeirada pelas Secretaria Estadual de Educação (SEE-GO) e também pelas secretarias municipais de educação localizadas em todas as cidades de Goiás. Além de aligeirada e improvisada, a organização e decisões sobre a mediação de aulas por tecnologias virtuais foi realizada na maioria das vezes por escolas públicas sem a participação dos professores ou pais de alunos.  Grande parte dos professores não dispunham na época de tecnologias adequadas para a realização das aulas e também muitos não possuíam se quer qualquer intimidade com as chamadas tecnologias digitais de ensino. Não foram ofertados pelas secretarias de educação municipais ou pelo governo estadual qualquer forma de subsídios para a aquisição de computadores e instalação de internet de qualidade nos lares dos docentes, tão pouco foi oferecido capacitação ou formação continuada adequada e em tempo hábil na área de informática para a classe docente. Se houve imensa dificuldade de adaptação dos professores ao chamado modelo de aulas remotas, imagina então para a maioria dos alunos pobres de escolas públicas localizadas nas periferias das cidades goianas. Os relatos e testemunhos são de professores sobrecarregados e exaustos de atividades on-line, alunos abandonando as aulas e muitas reclamações dos pais que afirmam não terem tempo ou disponibilidade de auxiliar os filhos nas atividades escolares.

Os inúmeros relatos em jornais e em redes sociais são de professores ministrando aulas via grupos de whastsapp, onde os alunos acessam os conteúdos das aulas através dos celulares de seus  pais, haja visto que a maioria são oriundos de famílias pobres e moradores das periferias das cidades em Goiás, não possuindo computadores ou internet instalada em seus lares, restando apenas os celulares dos pais que passaram a ser compartilhados com os vários filhos nas atividades escolares remotas, mas somente quando havia disponibilidade financeira para compra de créditos para utilização dos celulares.

Segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad 2018 - IBGE) o país tem um contingente muito grande de excluídos digitais, onde cerca de 46,96 milhões, ou seja, 25% da população não tem acesso à internet , e a cada cinco lares no Brasil, um (01) ainda não possui internet. Nas áreas rurais ou em regiões onde a renda da população é mais baixa, as diferenças aumentam ainda mais. Segundo essa mesma pesquisa do IBGE, apenas cerca de 78,3% da população possui celular com acesso a internet, sendo que 5,1% dos lares brasileiros não possuem telefone fixo ou móvel. E é exatamente essa a realidade familiar de grande parte dos alunos das escolas públicas em Goiás. A pandemia vem novamente para desmascarar a triste realidade de exclusão e de pobreza em que vive grande parte da população brasileira, e além disso, o EaD que passa a ser implementado dentro da pandemia em Goiás vem provocando também o aumento das desigualdades entre aqueles que possuem acesso à internet de qualidade e os que não possuem acesso. Desta forma ocorre uma desigualdade de oportunidade nos processos de ensino-aprendizagem e ainda uma falta de equidade no acesso a educação que deveria ser igualitária e ainda um direito de todos.


Tabela - Pnad 2018 (IBGE)


A exclusão digital passou a ser apenas um dos empecilhos e problemas enfrentados por alunos e professores durante este período de pandemia em Goiás. Além da luta por acesso à uma internet de qualidade para a realização do trabalho e de todas as demais atividades educacionais, tem ainda o enfrentamento diário contra o vírus Sars-Cov-2, numa frenética e contínua tentativa de querer se manter vivo. Em um contexto assustador de pandemia, com cerca de mil mortes diárias provocadas pela falta de assistência médica, onde alunos e professores presenciam quase que cotidianamente a perda de renda por questões do desemprego familiar, abalos emocionais causados por mortes de parentes ou amigos próximos, tudo isso ao final acaba gerando um grande estresse e fadiga em todos, e exatamente num momento crítico da pandemia onde o vírus continua descontrolado e se propagando de forma cada vez mais rápida e intensa.

Nas escolas públicas em Goiás, com os baixos salários, a massificação de alunos por turma, as cargas horárias excessivas, o não pagamento do piso salarial, a violência dentro das escolas e a total falta de valorização docente, já eram componentes que antes mesmo da pandemia serviam como potencializadores da precarização do trabalho do professor. Entretanto, neste novo contexto de pandemia, caracterizado pelo trabalho remoto, a precarização e intensificação do trabalho aumentaram consideravelmente, e tem levado vários professores de escolas à exaustão e ao adoecimento por doenças psicossomáticas. O trabalho remoto da forma em que está colocado e em tempos de pandemia não pode ser considerado um privilégio diante daqueles que não tem outra opção, a não ser realizar o trabalho presencial ou essencial. O que se observa na prática cotidiana dos professores que ministram aulas em EaD durante o período de pandemia é apenas uma imposição burocrática e legalista de gestores de escolas e das secretarias de educação para o simples cumprimento de conteúdos e cargas horárias das disciplinas escolares, sem respeitar o tempo e o processo de ensino-aprendizagem num contexto complexo e trágico de uma pandemia. O que se observa atualmente é uma cobrança sem limites em cima dos professores e também dos alunos para transmissão e efetivação de conteúdos tradicionais, que na maioria das vezes não conseguem dialogar ou contextualizar o aluno aos dilemas, dficuldades e desafios do tempo presente, ou seja, de um ensino em tempos de pandemia. É como ensinar física atualmente sem falar de crescimento exponencial numa pandemia; falar de matemática sem relacionar os números aos pontos de inflexão da curva de contágios; comentar biologia sem falar de morcegos e vírus; discutir sociologia sem interpretar as relações entre destruição da natureza, capitalismo e pandemia; ensinar educação física sem correlacionar o cancelamento dos jogos olímpicos e a pandemia ou analisar futebol sem citar os estádios sem as torcidas. Não faz sentido ensinar conteúdos tradicionais nas escolas sem abranger o momento histórico marcado pela pandemia e as suas consequências globais. Percebe-se assim que o tempo, as metodologias, os conteúdos e os temas das aulas devem ser sim modificados e ressignificados para o momento atual, e que o ensino não pode mais se pautar nos paradigmas daqueles anteriores à pandemia, pois o ensino virtual jamais poderá substituir o ensino presencial, ele é apenas um instrumento pobre, vazio, limitado e emergencial e que não pode ser generalizado ou priorizado, porém, ele se faz necessário a fim de se evitar os contágios e as aglomerações em salas de aulas, daí a importância e urgência em reinterpretar  o ensino em tempos de pandemia. Pois, o mundo jamais será o mesmo a partir de dezembro de 2019, com a descoberta do novo coronavírus, não existirá jamais um "novo normal", e nem tão pouco as escolas ou as aulas serão como antes e nem devem ser. Faz-se então relevante ouvir os professores e os alunos para se construir um novo processo de ensino e aprendizagem dialógico, humanizado e contextualizado, capaz de trazer respostas e soluções a este novo tempo inaugurado pelo vírus Sars-Cov-2, que virou o mundo de ponta cabeça e colocou em xeque a própria ciência moderna, expondo as suas contradições, seus limites e contrastes. Exigir as mesmas coisas, as mesmas cargas horárias, os mesmos conteúdos, a mesma rotina dentro da velha burocracia escolar é subestimar o poder e a letalidade do vírus, e ao mesmo tempo é subestimar também a inteligência, a criatividade e os saberes de professores e alunos, que juntos terão que lutar para construírem um modelo novo e diferente de aprendizagem e de escola capaz de superar as limitações e a miséria do ensino virtual, que seja também capaz de anular a precarização do trabalho e as imposições burocráticas de uma velha escola anterior à pandemia que ainda insiste em querer existir e em apenas formar mão de obra barata para um mercado de mão de obra barata que já nem existe mais, pois o vírus só escancarou ainda mais o submundo do desemprego e da informalidade.