(Escrito por: Renato Coelho)
Sempre os
governos de diferentes países e em diversas épocas utilizaram os esportes como
instrumento ideológico e de manipulação da população, desde Getúlio Vargas,
passando pelos presidentes do regime militar, FHC, Lula, Dilma e chegando até
aos dias atuais. E nestes tempos tenebrosos de pandemia não tem sido diferente.
As velhas e demagógicas políticas de controle estão sendo constantemente
utilizadas por governos, instituições e também pela grande mídia no sentido de
forçar as pessoas a acreditarem que mesmo em um contexto de pandemia, com as
curvas ascendentes de mortes e de contágios pelo novo coronavirus no Brasil, cinicamente
vaticinam que a vida pode simplesmente seguir nos antigos padrões da
normalidade social ignorando a alta transmissibilidade e letalidade do vírus
Sars-Cov-2 e suas mutações não menos perigosas. O que estamos a assistir é uma
tentativa obstinada por parte do Estado, da grande mídia e também dos grandes
empresários em impor uma normalidade impossível em tempos de descontrole total
da pandemia no Brasil. Podemos denominar este atual contexto de a Ditadura do
Falso Normal, onde se naturaliza a morte em massa a fim de permitir uma continuidade
da vida dentro de uma descontinuidade em tempos de pandemia. Hospitais em pleno
colapso de atendimento, com colocação de contêiners de câmara fria nos pátios para
acomodação de corpos, multiplicações de mutações virais mais letais, falta de
vacinas, escassez de oxigênio medicinal para o atendimento de pacientes com
Covid-19 e campeonatos estaduais, nacionais e internacionais de futebol, basquete
e outros esportes ocorrendo normalmente em solo brasileiro. Além de aumentar os
contágios entre os atletas e os seus familiares, a continuidade das práticas
esportivas profissionais é capaz de provocar ainda o adoecimento ou a morte de centenas
de outros trabalhadores envolvidos direta ou indiretamente com o espetáculo esportivo.
Além deste grave e real problema sanitário de contágio dentro do ambiente
esportivo, tais eventos no contexto brasileiro de aumento de transmissão criam
uma falsa normalidade capaz de expor milhões de pessoas ao vírus, ao fazerem as
mesmas acharem que a vida já voltou ao normal, porque os seus times do coração
voltaram a jogar os campeonatos nacionais, de fora de consciente ou inconsciente,
essa ação de assistir o jogo e torcer, mesmo que pela TV, é capaz de provocar
um relaxamento da maioria da população, sob
o discurso falacioso do “novo normal”, de um normal que nunca existiu,
mesmo antes da pandemia. Esse bombardeio constante de propaganda da falsa
normalidade atinge a todos e colabora com a necropolítica do Estado brasileiro
em transformar a curva exponencial da pandemia no Brasil na mais alta e longa
do mundo, sob um platô com uma média móvel de 900 a 1000 mortes diárias. Os
números e a matemática ratificam que a vida não segue nada de normal.
O esporte a
partir do século XX se transforma em espetáculo midiático e em megaevento de
entretenimento de bilhões de espectadores em todo o mundo. O esporte mercadoria
se transforma em produto de consumo e é ofertado não mais como exercício
físico, promoção de bem estar ou prática de lazer, mas é transformado em objeto
de contemplação e de fethiche. O sujeito que antes praticava o esporte e o
próprio esporte se transformam em objetos reificados. O ativo praticante e desportista
do dia a dia ou aquele torcedor
apaixonado pelo seu time e frequentador dos estádios desaparecem no mundo do
esporte espetáculo moderno e passam a dar lugar ao consumidor passivo do
entretenimento esportes, um mero sujeito inerte que apenas contempla virtualmente
o esporte espetacularizado e globalizado, que se transformou apenas em imagem a
ser vendida e consumida. Nessa metamorfose para se enquadrar no processo de
fetichização capitalista, o esporte não apenas se transforma em mais uma
mercadoria, mas também perde seus significados, seus símbolos, regras e
tradições. Nesse processo de mercadorização e de aniquilamento dos sentidos dos
esportes, ocorre o empobrecimento e a perda dos seus elementos constitutivos e
essenciais ligados a estética, a arte, ao popular e à história humana.
Mas o esporte
não é hoje uma mercadoria qualquer, mas sim uma mercadoria singular e que
movimenta uma cifra de bilhões de dólares no mundo. E além de produzir uma
escala astronômica de lucros aos seus patrocinadores, os esportes possuem
também um capital político e ideológico incomparáveis. Um exemplo marcante dos
esportes como instrumento ideológico foi demonstrado durante o período da
chamada Guerra Fria, quando da polarização do mundo entre a antiga União
Soviética (URSS) e os EUA, que dividiu o planeta entre países capitalistas apoiados e liderados pelos EUA e os países do
bloco comunista, ligados à antiga União Soviética. Durante este período as
olímpiadas se transformaram em palco de disputas hegemônicas entre atletas do
mundo capitalista versus atletas do mundo comunista. Nestas disputas, no
entanto, o “fair play” nunca existiu, pois eram constantes e comuns os
escândalos com doping envolvendo atletas de ambos os lados e que utilizavam esteroides
anabolizantes e outros fármacos para alcançarem o pódio e as cobiçadas medalhas
olímpicas, e com isso a hegemonia nos esportes mundiais que servia como a mais
poderosa e eficaz propaganda estatal.
Foto 02 - Filme Rock mostra o contexto da Guerra Fria nos esportes: Rocky Balboa (USA) x Ivan Drago (URSS)
Nos países da
América Latina não foi diferente o uso dos esportes por governos e regimes
ditatoriais, sempre houve ações estatais que transformaram os esportes em
bandeira de propaganda de representantes políticos ou de partidos. Na Argentina
de Perón ao Brasil de Vargas, sempre se soube do grande poder de fascínio, de êxtase
e de admiração provocados pelos esportes, em especial do futebol, sobre a maior
parte da população.
Durante o
período em que vigoraram as ditaduras militares na América do Sul, houveram
casos emblemáticos e históricos onde o Estado se utilizou do esporte para
promoção e propaganda de seus ideais e valores, sob o falso manto do
triunfalismo, da eficiência, do mérito e da sobrepujança, que são as características
do esporte. E mais ainda, aqueles que conseguiam as qualidades de serem os mais
rápidos, mais velozes, que iam mais altos e mais longe estavam então à serviço
da propaganda do Estado.
A ditadura
militar do presidente Videla na Argentina utilizou a Copa do Mundo de 1978 como
propaganda do regime ditatorial para o mundo, tentando esconder as mazelas
sociais do país, a pobreza e a violência estatal contra a os opositores da
ditadura. A Argentina que era sede da Copa do Mundo FIFA de Futebol em 1978
aumenta a violência e a repressão aos opositores no país durante o período da
Copa. Enquanto a bola rolava nos gramados argentinos, milhares de pessoas passavam
fome nos subúrbios das grandes cidades devido à miséria no país ou eram presas,
torturadas e mortas pela polícia argentina.
Mas a propaganda de Videla tentava passar ao mundo, a visão de uma outra
Argentina, bem diferente daquela que se via nas ruas de Buenos Aires ou nos
porões da polícia de todo o país. A propaganda estatal era a de uma Argentina do
“país do futebol” e da seleção de Passarela campeã do mundo em 1978. Mas, para
se chegar à final da copa e ao título, o governo argentino promoveu várias
intervenções junto à Fifa e também na escancarada manipulação de jogos que
beneficiaram o time anfitrião. Um jogo bastante emblemático foi entre Argentina
e Peru, onde a seleção Argentina necessitava vencer a equipe adversária peruana
com um placar de 4 gols de diferença para avançar à próxima fase, e tirar a
seleção do Brasil daquela Copa. Com visita do general Videla ao vestiário da
seleção peruana antes e após o jogo contra a Argentina, o placar final de 6 X 0
a favor da Argentina, provocou a desclassificação do Brasil, e fez a seleção argentina avançar à final e
disputar o título contra a Holanda, sagrando-se campeã do mundo.
Foto 03 - Argentina campeã mundial na Copa do Mundo de 1978
No Chile, da
mesma forma o ditador Augusto Pinochet, passa a promover intervenções e apoiar o
Colo Colo, o time mais famoso e popular da época e que formava a base da
seleção chilena. Com o objetivo também de tentar desviar a atenção da população
chilena e do mundo das barbáries, atrocidades e genocídios promovidos pela
ditadura chilena aos seus opositores, o governo do ditador Augusto Pinochet se
utiliza do futebol como instrumento de controle e para mascarar a realidade. O
Estádio Nacional do Chile em Santiago se tornou na época em um dos maiores
símbolos da cruel ditadura chilena. Este famoso e importante estádio de futebol
serviu de local de prisão e tortura para milhares de simpatizantes e apoiadores
do governo deposto de Salvador Allende. Milhares de chilenos foram assassinados
pela ditadura de Pinochet dentro do
Estádio Nacional do Chile. Um jogo que não aconteceu, mas que entrou para a
história do futebol foi nas eliminatórias para a copa do mundo de 1974 na
Alemanha, onde a seleção chilena deveria enfrentar a seleção da antiga União
Soviética, mas o time russo se recusou a entrar em campo em protesto contra a
ditadura de Pinochet e então a seleção do Chile vence o jogo por W.O e se
classifica, com o estádio lotado com mais de 20 mil torcedores chilenos que não
assistiram a jogo nenhum.
Foto 04 - Estádio Nacional do Chile
No Brasil podemos citar também vários momentos sobre a utilização dos eventos esportivos como instrumento ideológico e de manipulação, que vão desde os governos de Getúlio Vargas, passando pelos militares pós 1964 e indo até os governos atuais.
Um dos episódios
mais emblemáticos e marcantes da história do futebol brasileiro, e sobre a ideologização do maior esporte nacional,
ocorreu em 1970 na disputa da Copa do Mundo do México, onde a seleção comandada
por Pelé & Cia, considerada a maior seleção de futebol de todos os tempos,
se transformou na maior e mais poderosa bandeira de propaganda política da
ditadura militar brasileira. Enquanto milhares de brasileiros, que se opunham à
ditadura, eram torturados e mortos nos porões das delegacias policiais, o
governo exaltava e patrocinava a chamada seleção canarinho que se consagrou tricampeã
no México em 1970. A propaganda estatal sobre a seleção de Pelé não somente
tentava passar uma boa imagem do Brasil no exterior, assim como também
conseguia desviar o foco da população brasileira das questões importantes e
ligadas à fome, à miséria , às injustiças sociais e sobretudo com relação à
violência e repressão institucionalizada do Estado contra os próprios
brasileiros. O futebol ajudava a vender a propaganda do “milagre brasileiro”
referente ao crescimento artificial da economia e também promovia a falsa
imagem criada pelos militares do regime caracterizado pelo slogan “Brasil
Potência” ou “País do futuro”.
Foto 05 - General Emílio G. Médici recepciona seleção tricampeã do mundo em 1970.
Nos governos do
PT, de Lula e Dilma, (2002-2016) mais uma vez se gastou muita energia e
volumosas quantias em dinheiro para transformar o país na sede dos dois maiores megaeventos esportivos do planeta, a Copa do Mundo Fifa
2014 e Olimpíadas Rio 2016. A grande êxtase e o entusiasmo em sediar os
megaeventos mais importantes do esporte moderno contribuíram também para
desviar o foco e a atenção da população brasileira da sua realidade, camuflando
os problemas sociais e servindo de capital politico para o governo. Porém, os
gastos astronômicos com a construção das chamadas Arenas de futebol com padrão
Fifa, que ultrapassaram os 30 bilhões de reais (somente o estádio Mané
Garrincha em Brasília custou cerca de 1,5 bilhão de reais e com provas de
superfaturamento). Os gastos com as
Olímpiadas do Rio em 2016 ultrapassaram os gastos com a copa do mundo de
2014, alcançando a cifra de 40 bilhões de reais. Os altos gastos com os
megaeventos, sob o falso discurso de “Legado Olímpico”, e em contrapartida a falta de investimentos em infra-estrutura
ligadas à saúde, educação, saneamento e geração de empregos, e entre outros
fatores importantes, provocaram protestos em todo o país, onde a população
exigia com bloqueios de ruas e rodovias maiores investimentos em saúde e
educação e ainda a não realização destes mega eventos esportivos. As
consequências foram catastróficas com o endividamento público, a inexistência
de nenhum legado da copa ou das olimpíadas e ainda o fracasso político da realização
dos mega eventos ajudaram a derrubar a popularidade do governo do partido dos
trabalhadores (PT), e dentre outros fatores também importantes, a crise gerada potencializou
o processo de impeachment da presidenta Dilma Roussef (PT) em 2016.
Foto 06 - Alunos e professores da UEG cercam o ônibus da seleção brasileira de futebol em frente ao Mercury Hotel no Setor Oeste em Goiânia durante amistosos de preparação para a Copa das Confederações no ano de 2013. (Movimento Mobiliza UEG).
Hoje, durante a
pandemia do novo coronavirus e o governo de Jair Bolsonaro, também podemos
observar a velha estratégia de se utilizar o esporte como propaganda na criação
de uma falsa normalidade, com as mesmas estratégias e mecanismos que adotados
por governos anteriores, desde Vargas, passando pelos governos da ditadura
militar pós 1964 e pelos governos do PT a partir da década de 2000.
A partir de
agosto de 2020, ainda quando se observava grande aumento nas curvas de
contágios e de mortes pelo novo coronavirus em todo o país, houve o reinício do
campeonato brasileiro de futebol e também dos campeonatos estaduais. Mesmo sem
público nos estádios, foram criados vários protocolos sanitários para evitar o
contágio por atletas e pelas comissões técnicas. Mas o que assistimos foram
vários surtos da covid-19 entre times de todas as regiões do Brasil, inclusive
do Goiás E.C e também o Atlético Goianiense, ambos da capital goiana. E no dia
22 de setembro de 2020 o time com a maior torcida do Brasil teve 27 pessoas, O
Clube de Regatas do Flamengo, entre atletas, comissão técnica e cartolas,
contaminados em viagem à cidade de Guayaquil no Equador pela disputa da copa
Libertadores da América. O time que mais pressionou as autoridades para o
reinício dos jogos durante a pandemia, teve praticamente quase todo o time e o
próprio técnico contaminados pelo vírus Sars-Cov-2, provando assim que não
existe protocolo seguro quando a transmissão do vírus é acelerada e ascendente
(Rt>1).
Como se não
bastasse, existe hoje no Brasil uma forte pressão de clubes sobre a CBF no
intuito de liberar a participação de torcedores nos estádios durante a
pandemia. Esse movimento também é encabeçado pelo time do Flamengo, que exige a
abertura dos portões e das bilheterias aos torcedores. O ex-prefeito do Rio de
Janeiro, Marcelo Crivela, na época de olho nas eleições municipais, cedeu à
pressão e aprovou a reabertura do Maracanã aos torcedores. Mas com a revolta de
outros dirigentes de clubes importantes, como Botafogo e Fluminense,que não
concordam com a reabertura apenas do Maracanã, a prefeitura carioca e o
Flamengo voltaram atrás na tentativa de abrir os portões para os torcedores em
plena pandemia.
Foto 07 - Flamengo Campeão Brasileiro em pleno crescimento da segunda onda de Covid-19 no Brasil em fevereiro de 2021.
O que está de
fato por detrás da volta do futebol e também das torcidas nos estádios em pleno aumento de casos e de
contágios na pandemia? Hoje o país contabiliza mais de 250 mil mortos pela
covid-19 e várias cidades, como Goiânia, experimentam atualmente o pico de
casos e de mortes na pandemia na chamada segunda onda. Essa chamada
necropolítica que promove o genocídio de brasileiros em todos os estados da
federação, representa a tentativa desesperada e pragmática dos governos do país
(federal, estaduais e municipais) em criar uma falsa normalidade (alguns
denominam de “novo normal”), onde o esporte e principalmente o futebol pode ser
capaz de criar no imaginário das pessoas a falsa sensação de que a vida voltou
a ser como antes, uma ilusória percepção de que podemos sair de casa e
trabalhar como se a pandemia já estivesse terminado. Mas é o contrário, a pandemia está em sua
fase mais letal e veloz, ceifando milhares de vidas a cada instante. Há uma
estimativa do próprio Ministério da Saúde que prevê mais de 3.000 mortes
diárias no Brasil para os meses de março e abril de 2021, e os campeonatos
estaduais e a Copa do Brasil ainda continuam com os seus jogos ainda em andamento.
Vê-se assim uma
tentativa desesperada de recuperar as
perdas da economia, em um país onde o governo se utiliza de um discurso
negacionista, se isenta na criação de políticas públicas de mitigação dos
contágios, faz então multiplicar as tentativas e as propagandas de um falso
normal, onde os esportes servem de instrumento de mascaramento do verdadeiro
extermínio de classe no Brasil durante a pandemia. As pessoas são induzidas e
convidadas a consumir e se divertir mesmo com o vírus letal e sem controle nas
ruas. E o esporte é mais uma vez este mecanismo importante de criação da
normalidade impossível, tal qual ou muito pior, do que se assistimos durante os
períodos da chamada Guerra Fria, nas ditaduras da América Latina ou ainda com
os já citados megaeventos dos governos do PT no Brasil.
A grande
verdade, todos já sabem, para se controlar uma pandemia em um país pobre como o
Brasil requer grandes investimentos que garantam a manutenção financeira das
famílias de todos os trabalhadores, dos desempregados e dos mais pobres, também
a criação de políticas públicas coordenadas na área da saúde, capazes de
promover a testagem em massa, o rastreamento em massa, o isolamento em massa e
o tratamento de todos os contaminados do país, sejam os casos mais graves ou
assintomáticos. Ainda um programa de vacinação em massa que seja eficiente e
rápido a fim de frear as mortes pela Covid-19. Porém, nenhuma destas ações se praticam no Brasil,
daí o caminho mais fácil em colocar o trabalhador dentro dos estádios ou em
frente da TV para assistir o seu time em plena pandemia. O atalho está sendo
feito em utilizar os esportes como anestésico para uma população em pânico e à
beira de uma revolta por causa dos prejuízos e do aumento da miséria provocado
pela pandemia. Essa é a velha estratégia dos governos e do Estado para se criar
o falso normal, porém, a fome não é falsa e não se podem esconder os cadáveres
de milhares de mortos. E o culpado, obviamente, não é o vírus.